Nasci e cresci numa aldeia pequenina, não muito distante dos centros urbanos, mas privada do que na época, por essa Europa além, eram já sinais de real avanço civilizacional. Uma aldeia pequenina, mas muito alegre, rodeada de outras maiores, que formavam todas, próximas ou distantes, uma das maiores senão a maior freguesia do concelho.
Saí dessa aldeia, já entrado na adolescência, levado por um sonho que nascera aí, nem sei bem como, e sempre fora crescendo, apesar de uma ou outra intempérie que de vez em quando o ameaçava. E cresceu, cresceu… foi-se metamorfoseando, sem nunca perder o seu clarão inicial, até chegar a hoje, com o mesmo brilho com que a Providência divina quis alumiar os passos da minha caminhada histórica.
Pois, dessa aldeia pequenina ficaram muitas saudades, que, mesmo nos momentos mais difíceis, sempre reforçavam a energia que punha na realização do tal sonho. Às vezes, quando olho para trás, nem quero acreditar como pude passar assim pela vida, procurando aproveitar a ajuda dos meus formadores, o estudo e a meditação, até conseguir que nada se perdesse das coisas boas do passado, num crescimento que sempre quis que fosse integral.
E quando recordo essas coisas, é ainda para valorizar o presente no que ele tem de encanto como memória do passado.
Há pouco, lendo e relendo a encíclica “Fratelli tutti”, depois de reflectir um pouco sobre o aproveitamento que nela se faz da chamada parábola do bom samaritano, a memória fugiu-me para a cozinha da casa onde passei a infância, aquele espaço particularmente generoso, onde havia, entre outras coisas, uma mesa alta, com duas gavetas, uma arca e banco, uma cantareira, com prateleiras e armário, tudo com ar de rodear a lareira, que, apesar de situada numa parede lateral, era, de facto, o centro para onde tudo convergia. Esta espaço, assim amplo, servia também de sala de estar, para as refeições e o convívio da família, e lembrei-me quase instintivamente daquele hábito tão genuinamente cristão: eles batiam à porta do lado, que todos chamávamos postigo; e logo um dos mais pequenos corria, para ser ele a entregar ao pobrezinho a moeda que a mãe já tinha na mão (ela a tinha-o visto através da janela, que dava para o caminho e cujas portadas só se fechavam à noite, toda a gente sabe porquê).
O pobrezinho, dizíamos nós; mas no discurso da mãe era sempre um irmãozinho que estava à porta e que devíamos tratar com muito carinho.
A mim, o que sobremaneira me fascinava era o surgir de um cego, às vezes guiado por um miúdo tão pequeno como eu, bornal e guitarra a tiracolo; e perguntava: quer que reze ou que cante? Havia sempre, ou quase sempre, maneira de conseguir que fizesse as duas coisas: então, o cruzamento dos sons da guitarra com o dorido das palavras e o tom cavernoso da voz do cantor, criava no meu espírito, de sensibilidade excitada, uma imagem indescritível, que nunca mais pude esquecer.
Ceguinho, mozinho, pobrezinho, eram todos irmãozinhos… e a mãe, de mão estendida, entregava a moeda, dizendo, num tom que pretendia enternecer ainda mais o gesto: anda, leva ao nosso irmãozinho que está à porta.
O nosso irmãozinho!
Há muitas histórias, nem todas positivas, claro, ligadas a este fenómeno social, que se prolongou pelos anos quarenta e cinquenta adiante. Mais tarde, quando já não havia pedintes pelas ruas, comecei a ouvir falar da pobreza envergonhada, que, segundo se diz por aí, não diminuiu, antes aumentou.
Isso: não basta que a pobreza deixe de ser um espectáculo, para podermos tranquilizar-nos com o mundo que temos; mas também não basta criar partidos rotulados de sociais, legislar, fundar instituições, para que todos nos sintamos irmãos e que quem sofreu assaltos que os prostraram no caminho, meio mortos, reencontre aquela porção de humanidade que de qualquer modo lhes foi negada.
E a pregação dos púlpitos não chegará mais perto dos corações do que os discursos ocos das ideologias, se as famílias não voltarem a ter aquele mundo de gestos com que se aprendia, sem palavras inúteis, desde a mais tenra infância, que os outros também são da nossa família; e, se, por qualquer motivo, estão privados do nosso conforto, deixam de ser irmãos, para serem irmãozinhos, mesmo quando os vemos já consumidos pelos anos a as agruras da vida.
Falo de gestos, não de palavras: porque não se trata de restaurar uma linguagem que hoje, além de pouco inteligível, talvez pudesse ser encarada como alienante.
Deu um certo brado, há dias, aquela afirmação, infelizmente deslocada, pelo seu próprio autor de um contexto que lhe desse credibilidade: “Temos de repensar o Natal”!
Deixo aqui algumas palavras do Papa, que poderão apontar para algo que exige uma pedagogia muito especial no seio das famílias, para que se aprenda enquanto se é criança, a viver “a paixão compartilhada por uma comunidade de pertença e solidariedade”:
“Se não conseguirmos recuperar a paixão compartilhada por uma comunidade de pertença e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço e bens, desabará ruinosamente a ilusão global que nos engana e deixará muitos à mercê da náusea e do vazio. Além disso, não se deveria ignorar, ingenuamente, que «a obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e destruição recíproca». O princípio «salve-se quem puder» traduzir-se-á rapidamente no lema «todos contra todos», e isso será pior que uma pandemia” (Fratelli tutti, 36).