OS SINAIS DE DEUS

Domingo da divina misericórdia: dia de pensar e aumentar a confiança em Deus, que Se apaixona por nós, diante das nossas misérias físicas e morais, ainda por cima com o Seu coração humano.

“Jesus fez muitos outros sinais, na presença dos Seus discípulos, que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e para que, acreditando, tenhais a vida em Seu nome” (Jo 20, 30-31).

Amanhece pouco sorridente este domingo de Primavera, que vem precedido de promessas de mau tempo, com vontade de contrariar tantos projectos de fuga a confinamento, quase todos assentes numa certa irresponsabilidade.

Sem espaço nem tempo para tais projectos, desencorajado pelo ar triste da paisagem descolorida, debruço-me mais uma vez sobre as sugestões da liturgia para este domingo: um domingo de Primavera e da Páscoa para o qual conheci já várias designações: “Dominica in Albis”, porque nela os baptizados da Vigília Pascal precedente usavam pela última vez a veste branca que haviam endossado então, “Domingo de Pascoela” (a Páscoa pequena, por oposição à Páscoa propriamente dita), “II Domingo da Páscoa”, pondo em realce que todo o Tempo Pascal é pura e simplesmente Páscoa, e finalmente, “Domingo da Divina Misericórdia”.

Divina Misericórdia!

Alguns dizem apenas, “Domingo da Misericórdia”. Se a sua opção não é apenas um acto de preguiça, temos de lhes dar razão: porque o sentido mais profundo da palavra “misericórdia” é “paixão pelos miseráveis”; e quem há neste mundo que não seja miserável? Logo, só Deus pode, com verdade, apaixonar-se pelos miseráveis, ter misericórdia: não temos necessidade de acrescentar à palavra o adjectivo “divina”.

Domingo da divina misericórdia: dia de pensar e aumentar a confiança em Deus, que Se apaixona por nós, diante das nossas misérias físicas e morais, ainda por cima com o Seu coração humano. Esse coração que temos em Jesus Cristo, “perfeito Deus e perfeito homem”.

Leio e releio o Evangelho do dia, estilo muito próprio de João, que não fala de milagres, mas de sinais de Jesus. E diz o evangelista que Ele realizou muitos outros sinais, “na presença dos Seus discípulos, que não estão escritos neste livro”, ao contrário dos que o foram para que acreditemos “que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e para que, acreditando, tenhamos a vida em Seu nome”.

Se não me engano, há então dois tipos de sinais da presença de Deus na história dos homens: os que servem para alimento da fé da comunidade são públicos e o seu relato–tido como de inspiração divina – aceite pela mesma comunidade, será base e testemunha da sua fé. E há os outros, os que se multiplicam ao longo da vida e da história de cada um, com os quais Deus estabelece misericordiosamente o diálogo pessoal com cada crente, que se dá ou não conta de tal diálogo, consoante a intensidade da sua fé, que alimenta a todo o instante com a oração e a contemplação.

Estes sinais de Deus só muito raramente incluem algo de extraordinário, com alterações mais ou menos espectaculares do curso normal das coisas e da vida corrente. Cada um tem de aprender a transformar cada momento da sua vida em ocasião de amar a Deus e ao próximo, abrindo assim os olhos aos sinais que o mesmo Deus vai colocando na normalidade desses momentos.

Deus presente na nossa vida, não como fiscal ou figura incómoda, mas como fundamento, autor reconstrutor e defesa da verdade dessa vida.

Claro que isto implica uma imagem correcta do próprio Deus:

Quando um pensador como Sartre escreve que matou Deus aos sete ou oito anos, é evidente que se está a referir a um deus que nunca existiu senão na sua mente, deformada por um ensino e uma prática religiosa que não conheciam senão aquilo a que podemos chamar subprodutos da fé.

O pior é que esta imagem de Deus continua a influenciar, não só as concepções religiosas de muitas pessoas, mas o comportamento social e político inspirado em ideologias mais ou menos libertárias.

Passa ainda muito pouco de cem anos que morreu um pensador de origem judaica que, negando o mais profundo das suas raízes, afirmou solenemente que a religião era o ópio do povo. Dois mil anos antes, um outro judeu, consciente do mistério que sublimava nele a história desse mesmo povo, proclamara solenemente que morria para dar testemunho da verdade, fonte da libertação por que todos ansiamos.

Talvez não fosse de todo inoportuno, para nós, cristãos, um exame sério sobre o que fazemos desses sinais da passagem de Deus pela nossa vida, a ajudar-nos a descobrir, não uma verdade qualquer, intelectual, lógica, mas a verdade da própria vida.

A verdade desses gestos e dessas situações, com ou sem brilho, mas a que podemos dar uma dimensão de eternidade.

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