A citação do salmo 34 (v.19) dá título à nota pastoral apresentada pelo Bispo de Leiria-Fátima, com orientações para um “caminho de acompanhamento e discernimento” em ordem a “maior integração eclesial dos fiéis divorciados a viver em nova união”. É acompanhada por um “guia prático” para esse percurso.
(Está também editada em livro)
A nota pastoral de D. António Marto, com data de 31 de maio, parte do espírito da Exortação Apostólica “Amoris Laetitia”, do Papa Francisco, e das indicações que ali deixa, especialmente no capítulo VIII, para uma especial atenção a estes fiéis que vivem em nova união após um divórcio.
Muitos são os bispos que têm promovido uma reflexão séria sobre o assunto e definido alguns caminhos a percorrer para ajudar à vida cristã destas pessoas, cujo sofrimento é, muitas vezes, agravado pelo sentimento de exclusão das comunidades cristãs a que pertencem. É com base nessa reflexão, não só no âmbito da Conferência Episcopal Portuguesa, mas também por outros episcopados por todo o mundo, que D. António Marto escreve as orientações que sintetiza no título “O Senhor está perto de quem tem o coração ferido (Sl 34, 19)”.
O documento começa por referir “a boa nova do matrimónio cristão”, frisando que é esta a “obra prima e graça de Deus criador para constituir uma família feliz”, que se deve “reafirmar a beleza deste sacramento” e que “é possível vivê-lo em plenitude com a ajuda da graça divina, da oração e do cuidado pastoral”. Por isso, o Bispo agradece o testemunho do “amor esponsal e a quantos permanecem fiéis ao matrimónio, por vezes de forma heroica”, bem como aos que, “não obstante as separações, perseveram na fidelidade ao amor conjugal e à graça sacramental, sem procurarem uma nova união”, permanecendo assim em plena comunhão com a Igreja.
No entanto, não podem ser ignoradas “as múltiplas fragilidades, crises e sofrimentos que perturbam as relações conjugais e a vida das famílias”, indica o segundo ponto. No caso concreto de quem iniciou nova união após a separação, torna-se necessário o “acolhimento com misericórdia”, mediante “«um atento discernimento e um acompanhamento com grande respeito» (AL 243)”. Nesse sentido, os pastores e os fiéis são convidados a “abrir o coração” para acolher e dar resposta ao convite do Papa Francisco: “Convido os fiéis que vivem situações complexas a aproximar-se com confiança para falar com os seus pastores ou com leigos que vivem entregues ao Senhor” (AL 312).
O terceiro ponto desenvolve esta preocupação pastoral, nomeadamente, em relação aos que questionam a Igreja sobre “o grau da sua pertença à comunidade cristã, a sua idoneidade para assumir a responsabilidade de padrinho ou madrinha, ou a possibilidade de serem readmitidos à Confissão e à Comunhão eucarística”. A esses, os pastores devem acompanhá-los num “caminho de acolhimento, conjugando caridade e verdade”, processo que “poderá ser percorrido pelo homem e a mulher juntos, ou somente por um deles” e no qual se “deve acentuar o fundamental, o anúncio do amor e da ternura de Cristo, que estimule ou renove o encontro pessoal com Jesus Cristo vivo (cf. AL 58), e não o aspeto juridicista ou moralista da lei”. Em primeiro lugar, há que verificar se há condições para o “processo de nulidade do matrimónio no Tribunal Eclesiástico”. Não havendo, há ainda a considerar a hipótese do “compromisso de viverem em continência conjugal”, não se ignorando as “dificuldades de tal opção“.
Percurso dinâmico
O referido “percurso de acompanhamento e discernimento” é desenvolvido no ponto quatro da nota pastoral, assumindo como método o próprio título do capítulo VIII da “Amoris Laetitia”: “acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”. E para a sua execução prática foi elaborado um guião de apoio a este documento, onde são definidos com mais pormenor os passos a dar em cada uma das cinco etapas: “a) oração e exercícios espirituais, com vista à aquisição da liberdade interior; b) memória e exame de consciência acerca do matrimónio sacramental e das suas consequências, com vista à aceitação, reconciliação interior e ‘cura’ das feridas; c) avaliação da relação atual, bem como da consciência da presença de Deus e da vida espiritual dos dois envolvidos e da sua família; d) discernimento da vontade de Deus para eles neste momento e da melhor maneira de a pôr em prática; e) avaliação final do percurso e confirmação da decisão”.
Em cada uma destas fases, a metodologia será a de “oração e avaliação pessoal; partilha entre os dois elementos do casal; e diálogo com o orientador espiritual, a partir do vivido, recebendo a oportuna ajuda para continuar”.
Refere ainda este ponto que o percurso é feito, sobretudo, pelas pessoas em causa, cabendo ao pastor o papel de escutar, acolher, acompanhar e ajudar à decisão. Nesse sentido, dando grande relevância à consciência individual e ao “discernimento pessoal”, tendo em conta cada caso concreto, na sua história de vida e de prática cristã e, também, nos “condicionamentos ou fatores atenuantes ou agravantes que podem existir em cada situação particular, relativos à responsabilidade, culpabilidade e imputabilidade de um ato”.
O quinto ponto desenvolve, então, os critérios para um “exame de consciência” de avaliação profunda da situação, desde o reconhecimento da culpa e da abertura à conversão, até à situação dos filhos , do “cônjuge abandonado” e dos restantes laços com a família alargada. “A finalidade de todos estes critérios é superar uma leitura meramente emotiva da situação, ajudar a curar as feridas, a trabalhar os ressentimentos, a decidir os novos passos a dar, ou as novas opções a fazer”, defende o Bispo.
Como refere a Exortação Apostólica, este percurso “é dinâmico e deve permanecer aberto para novas etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal de forma mais completa” (AL 303).
Vias de integração na Igreja
“A meta da integração plena na Igreja é, naturalmente, uma vida de acordo com a condição batismal do fiel cristão, que inclui diversas expressões: a vivência da fé em Jesus Cristo, a prática da caridade cristã, a participação sacramental, a construção da sociedade humana segundo o Evangelho, a colaboração em serviços na comunidade eclesial”, lembra o número seis da nota pastoral. Nessa linha, poderá “não ser possível concretizar algum destes aspetos da vida cristã, sem que, por isso, essa pessoa deixe de fazer parte da Igreja ou tenha nela um estatuto inferior”.
O percurso de discernimento visa, então, não apenas decidir pelo sim ou não da “participação sacramental”, mas definir todo o contexto de uma maior e mais consciente presença ativa na comunidade, que cada pessoa ou casal descobrirá por si, com a ajuda do “pastor acompanhante”. A este, no final, “não compete propriamente tomar a decisão, mas assegurar que todo o processo decorreu como devia e reconhecer o papel da consciência das pessoas”. E, com ele, a Igreja confirmará a decisão.
“Todos somos chamados a esta missão”, conclui D. António Marto, delegando no Departamento de Pastoral Familiar da Diocese a responsabilidade mais específica deste trabalho, para o qual cria o novo Serviço de Apoio à Família.
O último apelo vai para os agentes da pastoral, em ordem a difundirem e aplicarem estas orientações, e para as comunidades cristãs, para “serem abertas a um verdadeiro acolhimento, dispostas a prestar atenção às situações difíceis, pacientes em propor caminhos de discernimento, generosas em favorecer possibilidades e lugares de integração”.