«O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado»
Tirar uma frase do seu contexto é sempre esvaziá-la do seu significado original, deixando-a à mercê de qualquer manipulador, que assim pode introduzir-lhe o conteúdo que lhe aprouver.
Creio não ser novidade para ninguém que isso acontece em larga escala com os livros sagrados, sobretudo, no caso dos cristãos, com o Evangelho, nas suas quatro versões canónicas.
Em português há até um bom número de adágios que, esquecida há muito a sua origem, se repetem frequentemente com significados que nada têm a ver com essa origem, alguns dizem mesmo o contrário do que diziam no seu contexto original.
Por outro lado, tratando-se do Evangelho, como de qualquer outro livro da Sagrada Escritura, o contexto de qualquer palavra ou frase não pode reduzir-se aos limites do discurso em que se encontra: porque a Sagrada Escritura, por ser palavra de Deus e testemunha da fé de um povo, abrange todo o mistério do diálogo do Criador com as Suas criaturas, de que o homem é cabeça e donatário.
Precisamos de um cuidado extremo, que inclui a coerência da fé, para não reduzirmos o significado das palavras, nem as obrigamos dizer o que Deus não quis dizer com elas; o que exige também que prestemos atenção ao ambiente cultural e histórico das comunidades crentes que as leram e traduziram, como expressão de fé.
Escrevo isto ao fim da manhã de um dia de temperaturas amenas, mas chuvoso e a ameaçar tempestade; uma manhã em que procuro caldear recordações coloridas ao sabor do Outono: alegres, tristes, algumas particularmente dolorosas; procuro caldeá-las com o sol do olhar carinhoso de Jesus.
Carinhoso, mesmo quando, como na cena do evangelho desta quarta-feira, há pessoas que provocam ira e tristeza nesse olhar divino.
Ira e tristeza, porquê?
Pela dureza dos seus corações, porque recusam o diálogo que poderia dar-lhes a eles e às outras pessoas ali presente, a oportunidade de ouvirem de novo a explicação, não do Seu gesto, mas do verdadeiro significado do Sábado.
Diz o texto sagrado que Ele, “olhando-os com indignação e entristecido com a dureza dos seus corações…” (Mc 3, 5).
Ontem líamos, do capítulo segundo do mesmo São Marcos, a frase conclusiva das palavras com que Jesus termina a resposta aos que O interpelam pelo que, na sua mente, seria uma transgressão da lei do Sábado:
«O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. Por isso, o Filho do homem é também Senhor do sábado» (Mc 2, 27-28).
E esta é uma frase que se usa muitas vezes truncada do que verdadeiramente lhe dá sentido: a muitos parecerá suficiente dizer que o sábado foi feto para o homem e não o homem para o sábado, como se qualquer transgressão que alguém achasse necessária, ou mesmo só oportuna fosse legítima.
Afinal, falta o conteúdo teológico dessa frase – e o Evangelho sem conteúdo teológico, nem literariamente teria grande valor -, falta, para vermos o seu conteúdo teológico, tanto o período seguinte, como o início da narração.
Realmente, pensa-se muito pouco no facto de os discípulos que colhiam respigas ao sábado para matar a fome, estarem com o Senhor:
Expressão, em meu entender mais simbólica do que real, ainda que o seja também.
Estar com o Senhor, significa fazer o que Ele quer, quando e como Ele quer se faça.
Ou, dito de outra maneira, que talvez possa chocar alguém, mas que me parece correcta e a exigir uma catequese muito séria por parte dos pastores: o discípulo de Cristo não procura excepções na sua fidelidade ao Mestre: procura agir de tal modo que, mesmo quando aparentemente se desvia da norma comum, será por exigência dessa fidelidade.
É por isso que não pode tomar o juízo da consciência individual como norma absoluta, nem invocar razões práticas ou de bom senso, para desobedecer: porque não se pode ser discípulo a prazo; e a obediência, como líamos há pouco no livro de Samuel, “é o melhor sacrifício” (Cfr 1 Sam 15, 16-23).
Ninguém me tira da cabeça que precisamos todos, mas todos, sem excepção, pastores e fiéis, de rezar instantemente pela purificação das nossa mentes, porque, ou eu me engano muito, ou temos o nosso trabalho específico pejado de farisaísmo camuflado.
A ira e tristeza de Jesus não nascem da fidelidade dos fariseus ao que Ele próprio dizia vir completar, levar à sua realização plena; mas da dureza do coração que inquinava essa fidelidade.
E coração duro pode também ser o que propõe vias alternativas, sem estar certo de que é por aí que se caminha com o Senhor, se está nas núpcias com o noivo.