Início da tarde de mais um dia em que o sol brilha sem aquecer, e os ventos que em anos normais serviam para limpar os vestígios da flor que se prendiam aos frutos incipientes, sacudindo as folhas verdes, parecem destinar-se apenas a mostra que, apesar de tudo, a natureza continua fiel ao seu ritmo, louvando o Criador.
Não sei bem porque me assalta este sentimento pouco definido, quando se aproxima a Hora de Vésperas, e sobem até Deus os hinos das pessoas e das comunidades que celebram a liturgia do tempo como a Igreja e com a Igreja.
Será talvez porque não soube caldear as coisas más que me aconteceram, nos últimos dias, com as boas, que foram muito mais.
Assim pego na escrita, disciplinadora do pensamento, com esta alegria matizada por sombras que não dissipei a tempo, e, por cima de tudo, a consciência que a nossa vida, a minha vida, sofre ainda mais e mais fortes pressões que aquelas que a carta de Tiago denuncia, no seio da comunidade cristã:
“De onde vêm as guerras? De onde procedem os conflitos entre vós? Não é precisamente das paixões que lutam em vossos membros? Cobiçais e nada conseguis: então assassinais. Sois invejosos e não podeis obter nada: então entrais em conflitos e guerras. Nada tendes, porque nada pedis. Pedis e não recebeis, porque pedis mal, pois o que pedis é para satisfazer as vossas paixões” (Tg 4, 1-3).
Dizem os estudiosos que possivelmente o autor humano desta carta será um membro da classe sacerdotal hebreia que, convertido relativamente cedo ao Evangelho, guarda a sua cultura e a severidade do estilo copiado do profetismo mais interventivo e recente.
Não me compete discutir tais hipóteses, ainda que lhes reconheça muita importância, para o aprofundamento dos conhecimentos bíblicos, mais como ciência auxiliar da exegese científica.
Para a minha fé, que desejo operativa, é suficiente que tenha sido tomada desde o início como palavra divina, inspirada, não em circunstâncias especiais, mas dentro do cumprimento da promessa de Jesus, que a vinda do Paráclito ensinaria toda a verdade à Igreja (Cfr , por exemplo, Jo 14, 25-26).
Talvez tenha faltado um pouco aos cristãos, ou mesmo muito, em certos meios, nos nossos dias, para não falarmos de outros momentos da história, o discernimento necessário à descoberta da responsabilidade que têm perante as tragédias que afligem o nosso mundo.
Responsabilidade, não apenas como cidadãos: mas como crentes, portadores de uma mensagem, a única capaz de saciar o homem de todas as fomes que são o resultado claro e incontornável, da cedência aos enganos da serpente do Paraíso, em todos os tempos e lugares (Cfr Gen 3, 5-8).
Mensagem que tem de traduzir-se em termos práticos, não imitando os erros de quem continua a dialogar com a serpente do Paraíso, recusando sistematicamente olhar para a serpente do deserto.
Lemos no trecho de São Marcos proposto pela liturgia para esta terça-feira:
O autor sagrado, depois de relatar uma discussão havida entre os discípulos, discussão tão fora do que vinham aprendendo, que eles próprios se envergonham e recusam falar dela ao Mestre, o evangelista acrescenta:
Jesus respondeu então:
«Se alguém quiser ser o primeiro, há-de ser o último de todos e o servo de todos.»
E, tomando um menino, colocou-o no meio deles, abraçou-o e disse-lhes: «Quem receber um destes meninos em meu nome é a mim que recebe; e quem me receber, não me recebe a mim mas àquele que me enviou»” (Mc 9, 35-37).
Deixo os clamorosos gritos que se têm ouvido nos últimos anos, a partir de leituras, no mínimo redutoras deste e doutros textos semelhantes, para saborear melhor o conforto que gera em mim aquele abraço do divino Mestre, Deus feito homem para recuperar também a verdadeira ternura humana; mas sobretudo porque Se identifica a Si e aos que O seguem, com todos os que precisam daquele carinho, não já como dom de algo que se possui, mas como entrega, serviço… aquilo de que tem necessidade todo o ser humano, desde que é concebido até mergulhar no seio eterno de Deus.
Que imenso oceano de reflexões possíveis traz consigo este abraço de Jesus! E que loucura a minha, olhar tão pouco para ele!
Claro, para acentuar o conforto da minha fé, em tantos momentos e encruzilhadas da vida que a fizeram vacilar.
Sim, para isso.
Mas também para perceber melhor o pouco uso que faço das armas que tenho à mão, para que o mundo seja mais humano e consequentemente, mais divino!
Cair no regaço de Jesus, que me abraça com a ternura que Lhe vem do Pai, sem olhar para o desfigurado do meu rosto, nem se fixar na sujidade das vestes, que os silvados e a minha falta de atenção rasgaram impiedosamente!