Homilia na Festa Litúrgica dos Santos Pastorinhos

Os pastorinhos são testemunho vivo deste “caminho espiritual” no qual foram introduzidos pela ternura da Senhora mais brilhante que o sol. Aquela luz que irradiava das mãos de Nossa Senhora, em que eles se sentiram imersos, fê-los “compreender quem era Deus, como Ele os amava e queria ser amado”.

Os santos Pastorinhos e a Música do Evangelho

No nosso Santuário celebramos hoje a solenidade litúrgica dos santos Pastorinhos, Francisco e Jacinta Marto. Eles são o melhor comentário vivo do evangelho proclamado.

O pequeno caminho da infância espiritual 

Quem é o mais importante, o maior?, perguntam os apóstolos. Jesus não lhes faz um discurso, um sermão. Primeiro faz um gesto visível que possa ficar impresso na retina e no coração. Qual é esse gesto?

Põe bem no centro não um adulto nem pessoa importante aos olhos do mundo, mas uma criança! Porquê? Não é para ressaltar a inocência, como por vezes se diz.

Ao apresentá-la não propõe um regresso à condição infantil, ao infantilismo. Propõe o “pequeno caminho da infância espiritual”. Nesse sentido convida a revisitar a infância, a   descobrir o mistério que a habita e carateriza: 

  • o entusiasmo da relação com a vida e as suas surpresas;
  • a abertura à relação de amor, ternura e carinho;
  • a confiança e abandono nos braços e no regaço da mãe e do pai que afastam o medo. Quando um pai ergue o filho pequeno nos seus braços, o eleva acima da sua cabeça e lhe diz: “Vês. És maior que eu”, o pequeno sente-se grande no amor do pai!
  • Em síntese, a confiança na bondade e na beleza da vida. 

Os pastorinhos são testemunho vivo deste “caminho espiritual” no qual foram introduzidos pela ternura da Senhora mais brilhante que o sol. Aquela luz que irradiava das mãos de Nossa Senhora, em que eles se sentiram imersos, fê-los “compreender quem era Deus, como Ele os amava e queria ser amado”. Sentiram-se atraídos e envolvidos pela beleza do amor e ternura de Deus que os surpreendia e deslumbrava a ponto de viverem a experiência da sua presença e união íntima. Assim abandonaram-se nos braços amorosos de Deus com uma alma de criança, sem medo, com total confiança, verdadeiramente felizes. Este é o segredo da vida mística!

Esta experiência deve contagiar-nos neste nosso tempo de esquecimento de Deus, de esmorecimento da fé. Hoje, num mundo plural e pluralista, num ambiente social e cultural de indiferença e, por vezes, adverso, não há fé que aguente sem esta dimensão mística. “Permanecer cristão hoje é um milagre”, escreveu o papa Bento XVI.

Colaborar no desígnio de misericórdia para o mundo em sofrimento

Um segundo aspeto da espiritualidade destas crianças ressalta do convite que Nossa Senhora lhes dirigiu: “Quereis oferecer-vos a Deus” para a reparação do pecado do mundo? É o próprio Deus que os convida a serem colaboradores no seu desígnio de misericórdia sobre a humanidade e a Igreja em momentos de grande sofrimento de guerras e perseguição. Para isso ofereceram-se sem hesitação, com o seu sim total, com o amor ardente que tinham no peito, com a oração solidária do rosário, com pequenos e grandes sacrifícios, com o testemunho de fidelidade até ao fim da sua vida feita toda ela oblação, pela paz no mundo e conversão dos pobres pecadores mais necessitados de misericórdia! Assim transmitiam a esperança no triunfo do amor sobre os dramas da história, do amor sobre o ódio, confiantes na promessa consoladora de Nossa Senhora:

“Por fim o meu Imaculado Coração triunfará…e será concedido ao mundo algum tempo de paz”.   

O Papa S. João Paulo II propôs estas duas crianças como exemplo que brilha aos nossos olhos: “duas candeias que Deus acendeu para alumiar a humanidade nas suas horas sombrias e inquietas”.

Caros irmãos e irmãs, no difícil contexto atual que o mundo conhece e atravessa, após longo período de fragilidades, feridas, incertezas, luto e medos provocados pela pandemia e em que paira uma ameaça de guerra, é necessário despertar da indiferença, da apatia, do cansaço espiritual, do desânimo que pode levar ao fatalismo. Por vezes somos levados a pensar que só os poderosos (os poderes económico-financeiros e políticos) podem transformar o mundo. Mas Deus conta com os pequenos e os humildes. Conta connosco, com cada um/a de nós. Chama-nos a ser colaboradores no seu desígnio de misericórdia com a força da fé na sua misericórdia, com o testemunho da conversão e da compaixão, com a força da oração, com o empenho pela paz, para renovar o mundo. Somos, pois, chamados a olhar o futuro com confiança, reconstruindo as relações entre as pessoas e os povos, como Bons Samaritanos que cuidam dos feridos e ajudam a curar as feridas do nosso tempo. Deste Santuário da paz faço um apelo a vós aqui presentes e a todos os católicos do país para iniciarem uma corrente de oração do rosário nesta semana, em forma individual, familiar ou comunitária, pela paz na Ucrânia.

A Música do Evangelho 

A espiritualidade da infância carateriza-se também pela alegria que podemos ver refletida nos santos pastorinhos. 

Jacinta era a menina que gostava de bailar e bailava com arte, como tal reconhecida pelos outros. Francisco era o menino que gostava de tocar o pífaro, a flauta pastoril como pastor que queria encantar ou embalar as ovelhas. Creio que podemos dizer que os dois irmãos, após as aparições, aprenderam com o Imaculado Coração de Maria a tocar e a dançar uma nova melodia, a da vontade de Deus, para fazer vibrar de felicidade os corações humanos em sintonia com o coração da Mãe celeste, que os conduz a Deus.

A sua vida pode descrever-se como o canto e a dança de um coração compassivo em que sobressai a beleza pela simplicidade e ternura de crianças e pela intensidade da sua entrega, com todo o amor a Deus e por todos os feridos da humanidade. Toda a sua vida foi um canto da alegria do Evangelho. No seu coração ressoou a alegria do Evangelho: a alegria da proximidade, da compaixão e da ternura, de que nos fala o Papa Francisco:

“Como cristãos, não podemos esconder que, «se a música do Evangelho parar de vibrar nas nossas entranhas, perderemos a alegria que brota da compaixão, a ternura que nasce da confiança, a capacidade da reconciliação que encontra a sua fonte no facto de nos sabermos sempre perdoados-enviados. 

Se a música do Evangelho cessar de repercutir nas nossas casas, nas nossas praças, nos postos de trabalho, na política e na economia, teremos extinguido a melodia que nos desafiava a lutar pela dignidade de todo o homem e mulher» encerrando-nos no «meu» e esquecendo-nos do «nosso»: a casa comum que a todos nos diz respeito.

Se a música do Evangelho deixar de soar, teremos perdido os sons que hão de levar a nossa vida ao céu, entrincheirando-nos num dos piores males do nosso tempo: a solidão e o isolamento, a doença que surge em quem não possui qualquer laço, e que se pode encontrar também nos idosos abandonados ao seu destino, bem como nos jovens sem pontos de referência nem oportunidades de futuro. 

Para nós, este manancial de dignidade humana e fraternidade está no Evangelho de Jesus Cristo. Dele brota, «para o pensamento cristão e para a ação da Igreja, o primado reservado à relação, ao encontro com o mistério sagrado do outro, à comunhão universal com a humanidade inteira, como vocação de todos» (FT 277) a ser todos irmãos e irmãs, Fratelli tutti!

Santuário de Fátima, 20 de fevereiro de 2022.
† Cardeal António Marto, Administrador Apostólico de Leiria-Fátima

HOMILIA
https://drive.google.com/file/d/1LCJAs1_XOzjyo7mx1gxRX-YdJgLRy8ws
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