Acolhimento e rejeição do enviado de Deus
Neste Domingo de Ramos, a Igreja católica reúne-se, como nós aqui em Fátima, para celebrar e integrar-nos espiritualmente na entrada de Jesus em Jerusalém onde foi reconhecido pela multidão exultante que o proclama como “Aquele que vem em nome do Senhor” e O aclamou gritando “Hossana, ó Filho de David!”, identificando-o como o salvador prometido por Deus ao seu povo e ao mundo.
Sentimo-nos certamente identificados com este acolhimento e esta ovação da multidão. Mas é importante não esquecer que será também uma multidão manipulada pelos grandes do tempo a pedir a sua morte, dias depois, como acabamos de escutar na narração da paixão.
Os próprios discípulos, que tinham começado a seguir o novo Mestre e o tinham reconhecido como Messias, estavam entusiasmados pelo aplauso popular, mas não entendiam realmente o que se estava a passar e o que Ele estava para lhes revelar. Só depois da morte e ressurreição de Jesus e da vinda do Espírito Santo, eles começaram a entender verdadeiramente o projeto de Jesus e acabaram por configurar por Ele as suas próprias atitudes.
O drama desta semana não é apenas uma questão histórica, mas torna-se muito real em cada época histórica e em cada vida humana. É importante concretamente para olhar para a alegria que sentimos, por poder celebrar juntos este Domingo de Ramos depois de dois anos de ausência. Mas é igualmente importante abrir com esta chave de Jesus a nossa atitude perante as guerras e violências que semeiam morte e destruição no mundo, de modo especial, neste momento, na Ucrânia. É importante para sabermos olhar com os olhos de Deus a nossa própria vida e as nossas relações com os outros.
Fidelidade de Jesus ao projeto de Deus
Em primeiro lugar, a entrada de Jesus em Jerusalém é um ato de fidelidade e coerência com tudo quanto viveu, anunciou, propôs. Ele tinha sido enviado ao mundo, para trazer uma nova maneira de pensar, de agir, de esperar. Ele era, de facto o Filho de Deus, mas tomou forma humana para mostrar com a vida, o que significa ser homem e Filho de Deus. Até aquele momento, Ele fora a manifestação do amor carinhoso de Deus para os que sofrem, para os oprimidos, humilhados e injustiçados, mesmo para os rebeldes, pecadores e injustos. Evitou ser chamado Messias e Filho de Deus, não porque não o fosse, mas porque sabia que estes títulos estavam ligados a um modo humano limitado e ilusório de perceber a liderança, o poder, a vitória e a felicidade. Mas agora, aceita e promove esta manifestação autêntica daqueles que começaram a ganhar o gosto pela presença libertadora de Deus. É importante que também eles – nós! – o aceitemos como o homem novo, aberto ao dom da vida, de felicidade, de transformação de Deus. Sem essa aceitação de Jesus não se constrói um mundo novo em dignidade e paz com sentido, nem vida ou felicidade que durem.
Essa atitude fiel de Jesus ao projeto de Deus é um ato de verdade e de coragem. É a única forma de ter uma vida digna de ser vivida, de afirmação de um modo de viver que não faz manobras de populismo, de manipulação da verdade, de corrupção ou de simulação deturpadora das relações e dos princípios da vida. Chegada a hora de manifestar totalmente o projeto de Deus, Jesus aceita e afirma aquilo que é: o verdadeiro Filho de Deus e Filho do Homem. A multidão dos que começaram a ser libertados reconhece-o, segue-o e aclama-o, embora ainda não entenda bem o projeto novo e libertador de Deus.
Este é, para nós também hoje o primeiro compromisso da celebração da entrada de Jesus em Jerusalém: a coragem do anúncio de Jesus como o Senhor e o Libertador da opressão, da injustiça, da morte, assumindo os seus gestos de misericórdia, de reconciliação, de cuidado dos que sofrem. Esses são os sinais da presença ativa de Jesus para construir a cidade do futuro.
Uma atitude de paz
Em segundo lugar, a entrada de Jesus em Jerusalém é um ato de paz. Ele não entra montado num cavalo de guerra, nem rodeado de soldados para a conquista e submissão da cidade. Estamos a ver qual o resultado desses líderes e conquistadores. Reduzem a cidade a escombros; as vidas ao sofrimento e às lágrimas; os corações ao ódio; a relação à desconfiança e ao conflito. A esses líderes interessa a submissão, o medo, e a morte dos adversários. Jesus, pelo contrário, quer a libertação do coração, a reconciliação dos irmãos, a construção da alegria, da vida, da paz, o refazer da vida, da cidade de todos e para todos. Por isso, não vem montado num cavalo de guerra ou num carro de guerra. Vem montado num jumentinho, o amigo da família, do trabalho, das viagens pacíficas para os encontros leais.
Esta semana de Jesus em Jerusalém é a denúncia absoluta da violência e da guerra como meio de resolver problemas e de construir o futuro. Na guerra em curso na Europa, temos visto o rasto de destruição de cidades, de meios de subsistência, de vidas de famílias inteiras, do futuro de milhões de crianças. Não há futuro com a guerra, não há vitória através da guerra. O sofrimento e a morte de Jesus são a consequência da lógica da violência. Ele oferece a sua vida; não tira a vida de ninguém. Oferece a vida, sem medo do sofrimento e da morte, para afirmar o triunfo da paz, da solidariedade e da vida de Deus.
Dom de vida para o mundo
Em terceiro lugar, a Páscoa de Jesus significa a oferta da própria vida do Filho de Deus por todo o mundo. Porque o amor de Deus não tem limites – nem o da morte – nem tem fronteiras ou inimigos. A todos é oferecido este dom da vida em absoluto: mesmo aos rebeldes e violentos, como o ladrão ao lado da cruz; mesmo ao centurião estrangeiro e pagão que preside à crucifixão e que é o primeiro verdadeiro crente; mesmo para as autoridades que tramaram a Sua morte para as quais Jesus implora: “perdoa-lhes, ó Pai, porque não sabem o que fazem”. Para todos os que o odiaram, rejeitaram, mataram, Ele foi fonte de vida.
Confiança no poder e no amor do Pai do Céu
Finalmente, a Páscoa de Jesus é o absoluto grito de confiança no poder e no amor de Deus: “Pai, nas tuas mãos entrego a minha vida”. De facto, o corpo que Maria – a Mãe que recebe os filhos/as vítimas de todas as injustiças, de toda a corrupção, de todos os abusos, e todas as guerras – parece ser a mãe de um sonho morto, da vitória da força, da repressão e da violência… o fim de um mundo humano, digno e com sentido. Mas, na realidade estava era tudo a começar! Com a descida de Jesus ao mais fundo da fraqueza humana que é a violência, o ódio assassino e a morte, nessa absoluta treva e nulidade, é que se revela a vida e se ilumina a aurora possível de um mundo novo para toda a humanidade.
Celebremos a Páscoa com realismo e esperança
Celebramos esta Páscoa nas trevas e na esperança: nas trevas da pandemia, onde parecer ir afirmando-se uma luz; no cair bárbaro das bombas da injustiça e ódio da guerra, onde surgem esforços e sonhos de paz. É em tudo isto que acompanhamos o Senhor Jesus na sua entrada em Jerusalém. Não nos demitimos de acolhê-lo e de aderir ao seu projeto de uma cidade nova de reconciliação, de dignidade, de justiça e de paz.
Como Maria, acolhemos as vítimas desta guerra e de todas as guerras, confiantes que, enquanto construímos a cidade humana na justiça e na paz, esperamos do poder amoroso de Deus a cidade eterna, onde não há lágrimas nem morte. Porque Jesus passou pela violência e a morte, mas está vivo e é dador de vida para toda a humanidade.
Fátima, 10 de abril de 2022
♰ D. José Ornelas, Bispo de Leiria-Fátima
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