Homilia da Missa de Gratidão e Despedida (Domingo I da Quaresma)
Testemunhas da proximidade, compaixão e ternura de Deus no mundo
Estamos hoje aqui reunidos para celebrar em ação de graças os dezasseis anos de ministério pastoral deste vosso irmão bispo que se despede. Desde já vos saúdo e agradeço a vossa presença e comunhão. Reservo para o final da celebração os agradecimentos mais específicos. Agora fazemos a homilia à luz da Palavra de Deus escutada.
Fixai o vosso olhar em Jesus
É de Jesus que, primeiramente, vos desejo falar neste dia. Com o autor da carta aos hebreus permito-me pedir-vos “fixai o vosso olhar em Jesus, autor e consumador da nossa fé… Ele sofreu a cruz, desprezando a ignomínia, e sentou-se à direita do trono de Deus”. Fixemos, antes de mais, Aquele que se entregou por nós, mas sobretudo aquele mesmo que ressuscitou. Porque algumas vezes esquecemos que nós acreditamos em Alguém que está vivo. Jesus Cristo vive verdadeiramente, caminha a nosso lado para aprendermos dele e com ele a ser irmãos e irmãs, servidores uns dos outros. Ele quer-nos vivos, fraternos, capazes de acolher e partilhar esta esperança. Por isso, fixai o vosso olhar em Jesus!
https://youtu.be/0ePNEigrSCk
O evangelho de hoje mostra-nos como Jesus entra nos desertos interiores e exteriores da nossa existência e do mundo. Carrega as nossas tentações, os nossos dramas e misérias para vencer o poder do mal e abrir-nos o caminho do encontro com o Deus da vida e com os outros. Quer transformar o deserto num jardim onde reine o amor divino, a convivência fraterna, a paz e alegria. Ele continua a vir aos desertos existenciais da solidão e da dor, está a nosso lado na luta interior contra todos os ídolos que escravizam os humanos.
Ele está no meio de nós: nos pobres, nos frágeis e descartados. Olha-nos através dos olhos deles e quer olhar para eles através dos nossos olhos de compaixão. Ele está na sua palavra anunciada e nos sacramentos do seu amor. Está presente sobretudo no pão e no vinho eucarísticos, seu verdadeiro Corpo e Sangue. Sim, está na eucaristia com a presença da sua pessoa inteira de ressuscitado e com todo o mistério do seu infinito amor redentor com que na cruz se ofereceu por nós e por todos! Fixemos, pois, o nosso olhar em Jesus eucarístico e tornemo-nos uma Igreja da adoração! Peço-vos isto, encarecidamente, à maneira de testamento dum bispo que parte! Porque na eucaristia pulsa o coração da Igreja. E se o coração não arde, os pés não andam!
Amai a Igreja
O autor da carta aos Hebreus convida-nos ainda a sentir o ânimo que nos vem do facto de estarmos “rodeados de uma grande nuvem de testemunhas”, que formam a Igreja do Senhor. É um convite ao amor e à gratidão à Igreja: amá-la tal como ela é, morena e bela como a noiva do Cântico dos Cânticos: “sou morena, mas formosa, filhas de Jerusalém… Não estranheis eu ser morena; foi o sol que me queimou. Os meus irmãos puseram-me de guarda às vinhas…”(1, 5). Esta é a Igreja que eu amo. Amai-a vós também. Sem dúvida, ela traz as suas rugas de dois mil anos de história. É santa e pecadora, sujeita às tentações no deserto do mundanismo. Mas não deixa de trazer em si a beleza do amor de Deus, da sua ternura e da fraternidade entre os irmãos. E por isso é bela!
Para ver a Igreja em verdade, é preciso o olhar da fé que torna visível o que é invisível, o mistério divino e humano ao mesmo tempo. Como dizia santo Agostinho: “Quando falo dela, não posso deixar de dizer bem”. Sim, cada vez que lhe descubro um defeito, a fé transforma-o em mancha da beleza; é uma ruga da minha mãe. Porventura não trazem rugas todas as mães? Mas é minha mãe, a minha. E as suas rugas? Se olho bem, são também as minhas. Precisamente por isto compreendemos também que a Igreja tem necessidade de uma permanente purificação e renovação evangélica.
Nós recebemos tudo da nossa mãe na fé, a Igreja: a Palavra e os Sacramentos do amor e da misericórdia de Deus, a ternura e o cuidado pastoral que nos rodeia, e sobretudo recebemos dela inumeráveis irmãos e irmãs na fé e, mais ainda, todos os santos e santas incluindo aqueles/as “de ao pé da nossa porta” ou da porta ao lado da nossa.
Sobretudo a celebração da eucaristia contém e comunica a grande força para manter sempre viva a fé e o entusiasmo da missão evangelizadora. Lembremos hoje a séria advertência do Papa Bento XVI: “Toda a grande reforma da Igreja está, de algum modo, ligada à redescoberta da fé na presença eucarística do Senhor no meio do seu povo”. Sim, porque se o coração não arde, não há reforma da Igreja que nos valha!
Sede testemunhas da proximidade, compaixão e ternura de Deus no mundo
Muitos dos nossos contemporâneos não conhecem mais a mensagem do evangelho. Até o seu vocabulário já não é compreendido. Será que voltamos aos primeiros tempos da Igreja em que havia apenas pequenos grupos de cristãos num mundo pagão e indiferente? E hoje um mundo simplesmente ignorante da fé cristã? Que fazer?
Comecemos por desenvolver em nós uma saudável tomada de consciência da nossa identidade cristã. Sem pretensão nem orgulho. Trata-se muito simplesmente de ser verdadeiro. Mas como seguir Jesus quando é reduzido a uma sombra fugidia ou figura histórica dum museu? Mostremo-nos muito simplesmente tal como somos: discípulos de Jesus Cristo vivo e portadores do evangelho. Sem complexos nem arrogância. Sejamos nós mesmos. Isso é permitido. É mesmo obrigatório. Anunciar e praticar o evangelho sem medo e sem vergonha como diz S. Paulo: “Eu não me envergonho do evangelho” (Rom 1, 16).
Mas é preciso mais. Como cristãos devemos tomar parte sem reticências na cultura da nossa época: na ciência, nos seus progressos, no fabuloso desenvolvimento das novas tecnologias, na arte, na sensibilidade. Sem dúvida, será preciso também o dom do discernimento. Nem tudo o que é proposto no mercado global da nossa cultura tem o mesmo valor. Mas como discernir, se nós nos pomos à parte, nos fechamos na nossa bolha?
Os cristãos vivem neste paradoxo: estão no mundo, mas não são do mundo. Em certos momentos, isto é crucificante. Como o foi para Jesus: puseram-no na cruz entre o céu e a terra. “Veio ao meio dos seus, mas os seus não o receberam”. Amou o mundo, mas o mundo não o amou. É também a nossa cruz: estar suspensos entre o céu e a terra. Mas é nesta posição que amamos o mundo e trazemos ao mundo uma força de ressurreição.
“Nunca homem algum falou como ele”, diziam as multidões. Oxalá nós cristãos possamos dizer o mesmo, na nossa época. Será preciso gritar para isso? De tempos a tempos sim, certamente. Mas permanece atual o que diz o profeta Isaías acerca do Servo do Senhor: “Ele não gritará, não elevará a voz, não clamará nas ruas”(Is 42, 2). Nós precisamos do dom de falar à nossa época, com firmeza e sem cumplicidades, mas nunca num tom de superioridade e menos ainda de desprezo. Precisamos do dom de falar como Jesus: “Encheu-se de compaixão pelas multidões porque estavam cansadas e abatidas como ovelhas que não têm pastor”(Mt 9, 36). Falar aos nossos contemporâneos para servir e não para dominar; com humildade, tecendo relações e lançando pontes para unir margens por vezes distantes. O estilo de Jesus é de proximidade, compaixão e ternura. “Se não formos esta Igreja da proximidade, com atitudes de compaixão e ternura, não seremos a Igreja do Senhor… uma Igreja que não se separa da vida, mas cuida das fragilidades e das pobrezas do nosso tempo, curando as feridas e sanando os corações com o bálsamo de Deus” (Papa Francisco), como Bom Samaritano da humanidade ferida.
A graça do perdão e da reconciliação
Ainda algo mais. Nós, cristãos, temos muito a fazer por este mundo: trabalhar pela fraternidade e amizade social, pela justiça, a solidariedade e a paz, combater a fome e a violência, cuidar e salvar o nosso planeta como casa comum de todos. Mas talvez o mundo tenha necessidade de algo mais da nossa parte: a reconciliação e o perdão. Entre nós e em toda a parte; entre todos de povos, raças e culturas diferentes, mas que vivem juntos.
Os homens e as mulheres do nosso tempo precisam de tomar consciência de que nem só de pão, de algoritmos vive o homem! Vive também de Deus e da sua ternura, da fraternidade e da amizade social, da cultura do encontro e do cuidado recíproco, da reconciliação, do perdão e da paz dos corações.
Leiria, 6 de março de 2022
† Cardeal António Marto, Administrador Apostólico de Leiria-Fátima
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