Irmãs e Irmãos,
Com a presença da maioria dos Bispos de Portugal, de um grande número de sacerdotes e Diáconos, do Senhor Presidente da República, mais alto representante do país, e de uma multidão de fiéis aqui presentes, e outros que nos seguem por meios telemáticos, realizamos hoje, neste emblemático santuário de Vila Viçosa, um ato pleno de significado, tanto do ponto de vista religioso, como civil e identitário da nossa realidade portuguesa e da vida de toda a Igreja.
De facto, o ato de coroação e proclamação da Imaculada Conceição como Padroeira de Portugal insere-se como um marco muito significativo na discussão académica e teológica sobre o significado e o papel de Maria, mãe de Jesus, no projeto salvador de Deus e na vida da Igreja.
Por outro lado, este significativo evento teve lugar num tempo importante para a definição da especificidade e identidade da nação portuguesa, quando se consolidava a sua independência e o seu relacionamento autónomo no contexto das nações, inclusivamente com a vizinha Espanha, permitindo a criação de laços livres de submissões e conflitos, que não cessaram de se aprofundar ao longo de séculos, para bem dos nossos povos, até aos nossos dias.
Por isso, voltar às nossas raízes e reconhecer de onde nascemos e a matriz de fé do povo e dos seus governantes de então, não significa parar no tempo, nem afirmar um nacionalismo ideológico, fechado e conflituoso. Pelo contrário, é afirmar os elementos da nossa unidade forjada no devir da história, integrar os valores fundamentais que nos caraterizam, de forma nova e criativa, como um trampolim de projeto novo de futuro.
Voltar à tradição e à proclamação da Imaculada Conceição como Padroeira de Portugal, a 25 de março de 1646, aqui em Vila Viçosa, tem de ter o caráter de uma releitura hermenêutica e atualizadora, para que a história não seja fator de imobilismo congelador, mas um processo de fidelidade dinâmica àquilo que se celebra. Aqui, por uma razão maior, porque a origem da celebração de hoje, não está em 1646, mas em Maria de Nazaré, a mãe de Jesus, a quem o mensageiro de Deus se dirige com uma saudação exultante: “Alegra-te (Salve), Cheia de Graça, o Senhor está contigo”.
Na realidade, o título de Maria na solenidade de hoje – Imaculada Conceição – é uma designação mais redutora, moralista e jurídica do que a saudação jubilosa e ampla do anjo: “Cheia de Graça”. Ser cheia de graça não é propriamente uma qualidade de Maria, mas algo que parte de Deus e do seu modo de olhar para ela. Logo depois, o anjo explica este título dizendo: “Encontraste graça aos olhos de Deus”. Quer dizer: Deus olha-te com carinho, com bondade; para Ele, tu és querida e preciosa; Ele olha-te com gosto e ternura. Este é o princípio fundamental da vocação e da missão de Maria, a sua força, o seu segredo íntimo, que transborda no hino jubiloso que nos deixou. Por isso, ela considera-se a “serva do Senhor”, para realizar a Sua Palavra e louva-o por aquilo que realiza na sua pequenez: “A minha alma engrandece o Senhor… Todas as gerações me chamarão Bem-aventurada!”
Este é também o primeiro traço que Maria imprime naqueles que, como ela, recebem o Espírito de Deus e são por Ele guiados. Deus nunca tinha esquecido a humanidade (a primeira Eva), na sua limitação, miséria e sofrimento. Agora, em Maria, nova Eva e Mãe da nova humanidade, nós entendemos que Ele olha para a sua descendência com um novo carinho a ponto de nela inserir o seu próprio Filho. Esta é a primeira palavra que soa também para cada um de nós, nascidos desta nova Eva, regenerados do Coração do Homem Novo, que Maria trouxe no seu seio, e a quem Deus chama filhos e filhas. A cada um/a o Espírito segreda: Deus olha-te com bondade, com carinho e misericórdia de Pai. Sem esta consciência de ser amado/a por Deus, não é possível uma real atitude de fé, segundo o caminho de Jesus. Todos estamos marcados por este olhar misericordioso e amante de Deus, que dá alegria, força, e esperança à nossa vida e à nossa ação.
Identificar Maria como “Imaculada” não revela imediatamente toda a abrangência da saudação “cheia de graça” do anjo, mas responde diretamente à precariedade da humanidade, quando dela desaparece essa graça, quando Deus não está presente e a lei fundamental não é o cuidado do outro e do mundo, mas a lei do mais forte, e do domínio sobre os outros. Esse é o espírito do mal que, na linguagem simbólica da Bíblia insinua à primeira Eva que Deus é invejoso do bem dela e da sua descendência, o limite para o progresso e a plena realização humana (cf. Gn 3,4s). Esse é o espírito que conduz ao medo de Deus e até ao desejo de vê-lo fora da própria vida, da sociedade e dos projetos de futuro. Mas, sem Deus Criador e Pai, não há fraternidade, o mundo não é dom mas objeto de conquista, de açambarcamento e de luta, até à guerra e a destruição da própria terra. E mesmo que se consiga períodos longos de paz e realizações cada vez mais espetaculares da ciência e do progresso, será sempre limitado ao caráter finito do mundo e do cosmos. Sem Deus o mundo humano caminha para a autodestruição, seja pela sua precariedade natural, seja pela desagregação e violência dos próprios seres humanos (Veja-se o que se passa na Ucrânia).
Porque “cheia de graça”, sobre a qual desce o Espírito de Deus, Maria não foi maculada por esse espírito redutor, autocêntrico e destruidor da primeira Eva. Pelo contrário, saudada pelo anjo na sua identidade de amada de Deus e na sua missão de Mãe do Seu Filho, ela sai dos seus projetos e da sua agenda, declara-se “Serva do Senhor” e “põe-se apressadamente a caminho”, para levar à casa de Isabel a feliz notícia do Salvador e o serviço necessário à sua prima. E as duas exultam pela realização das promessas feitas por Deus a Israel e ao mundo.
Fiel a Jesus até à cruz, onde se revela e atua o poder salvador de Deus, Maria contempla o dom do Espírito que brota do Coração trespassado do Filho que dera à luz e escuta o alargamento da sua missão como mãe do discípulo presente e dos outros discípulos que formarão a Igreja.
Mãe da Igreja, acolhendo Jesus morto nos seus braços ela lega aos seus novos filhos a sua missão de cuidadora e próxima de todos os que sofrem e dos que perecem vítimas do ódio, da injustiça e da guerra, ou da própria limitação humana, afirmando o poder da ressurreição que se estende a todos os que são regenerados pelo Espírito de Jesus. (Não me parece desapropriado ver essa imagem de Maria nas mães grávidas e parturientes, vítimas dos bombardeamentos de uma maternidade, em Mariupol, na Ucrânia, nestes dias.)
É desse coração misericordioso de Deus que nos fala o Evangelho que hoje proclamamos, na parábola do Pai misericordioso e do filho desencaminhado, uma das páginas mais belas da Bíblia. A misericórdia de Deus revelada em Maria, a “cheia de graça”, não é mérito dela, mas de Deus “cujo nome é Santo”. Essa misericórdia derrama-se, não apenas sobre os justos, mas como expressão do amor de Pai-Deus, especialmente para com aqueles que mais precisam, pela sua realidade particularmente decaída e corrompida pelo pecado.
Também aqui, a mensagem para a Igreja, a casa do Pai do céu, é clara: A casa de Deus é lugar de acolhimento para todos, a começar pelos que mais sofrem e os pecadores. A Igreja não é imaculada, mas, como Maria, é objeto da graça (favor e carinho) de Deus. Dentro dela há filhos que não entendem o amor do Pai e abandonam a casa em busca de uma liberdade e de uma felicidade ilusórias. Outros, numa atitude hipocritamente justiceira e punitiva acham desapropriada, injusta e até ofensiva a atitude acolhedora e de festa do Pai pelo regresso de um filho ingrato e esbanjador.
Maria, Mãe da Igreja, acolhe os discípulos, os mais fiéis e os que debandaram perante a perspetiva da cruz. Ela que é “imaculada e cheia de graça” guia-nos no acolhimento do Espírito de Jesus, para bem cuidar da casa de Deus, a Igreja, para que seja revelação e laboratório da misericórdia de Deus. Acompanha-a também na sua missão de cuidar da casa comum da humanidade que é a Terra que Ele nos deu para ser, para cada um dos seus filhos e filhas, terreno fértil de fraternidade, dignidade e paz. Acompanha-a igualmente, a caminho do mundo novo que só o poder de Deus nos pode oferecer, na plenitude da vida e da paz.
Vila Viçosa, 27 de março de 2022
† José Ornelas, Bispo de Leiria-Fátima
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