Esperança num tempo novo para além da crise (Homilia de final de ano)

O último dia do ano tem um simbolismo próprio e uma densidade particular. De certo modo é como que a síntese de todas as horas do ano prestes a terminar. Nele recolhemos como num cesto todas as horas, dias, semanas e meses que vivemos, para oferecer tudo ao Senhor. 
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Esperança num tempo novo para além da crise

Reunimo-nos aqui em família e assembleia eucarística para celebrar a passagem de ano. Saúdo fraternalmente todos vós que viestes a este encontro.

O último dia do ano tem um simbolismo próprio e uma densidade particular. De certo modo é como que a síntese de todas as horas do ano prestes a terminar. Nele recolhemos como num cesto todas as horas, dias, semanas e meses que vivemos, para oferecer tudo ao Senhor. 

A nossa reflexão inspira-se em duas figuras do evangelho de hoje. Como os pastores glorificavam e louvavam a Deus por tudo o que viveram junto de Jesus, também nós damos graças a Deus pelos muitos dons concedidos pela sua bondade, pelas pequenas e grandes maravilhas da sua graça na vida de cada um, da Igreja e do mundo, no ano prestes a terminar. Como Maria guardava e meditava todas as situações no seu coração com a luz de Deus, também nós meditaremos alguns aspetos do caminho pastoral da Igreja, face aos novos desafios. Fá-lo-emos em jeito de revisão de vida. Como quem procura abrir janelas que nos permitam vislumbrar alternativas para um futuro melhor

Esperança para além da crise

A pandemia continua a surpreender-nos e a assustar-nos com a nova vaga. Não pode contudo paralisar-nos. Antes, deve sacudir a nossa consciência e levar a refletir sobre a nossa condição humana, a fragilidade da nossa vida e do mundo. É um desafio a todo a humanidade. Mas toca o íntimo de cada um. Está a tornar-se uma “peregrinação interior, no coração”. Pede-nos para olhar o essencial, reavaliar o que é verdadeiramente importante na vida e viver de modo diverso, uma vida renovada, verdadeira conversão. Durante todo este tempo, o Papa Francisco empenhou-se como ninguém, incansavelmente, em ajudar-nos a ler os sinais dos tempos através de mensagens e gestos estimulantes. Quem não recorda a imagem daquele dia 27 de março de 2020 com o Papa, só, de noite, na praça de S. Pedro, levando o peso do sofrimento humano? Um gesto eloquente que ficará na memória coletiva. Precaveu-nos contra falsas ilusões e consolações. Convidou-nos a abrir a novas formas de vida pessoal, familiar, social e a transformar estruturas que produzem e aumentam pobreza injusta. Lembrou, repetidamente, que ninguém se salva sozinho. Apontou os caminhos da fraternidade e solidariedade, do encontro que abate muros e do cuidado uns dos outros. À Igreja indica-lhe uma pastoral de proximidade, compaixão e ternura ao jeito do bom samaritano que é Jesus Cristo.

Faz um chamamento particular aos cristãos para viver e partilhar a esperança de um tempo novo. Se abrirmos os nossos corações e mudarmos as nossas relações, seremos mais capazes de receber e dar amor, teremos um futuro novo diverso do passado. 

O Sínodo, sinal de esperança para a Igreja

Um sinal de esperança na Igreja é o caminho sinodal já iniciado que o Papa propõe a todo o povo de Deus. Convida todos os fiéis a caminhar juntos, de mãos dadas,  em comunhão, para nos  escutarmos uns aos outros e, todos juntos, ao Espírito Santo. Isto para discernir o que o Espírito sugere à Igreja em ordem a encontrar caminhos  e linguagens novos para o anúncio do Evangelho hoje. É um modo audacioso de pôr a Igreja em diálogo consigo mesma, no seu interior; e com a história e o mundo neste tempo de tormenta próprio da viragem epocal. O objetivo autêntico da sinodalidade é «fazer germinar sonhos, suscitar profecias e visões, fazer florescer a esperança, estimular confiança, faixar feridas, entrançar relações, ressuscitar uma aurora de esperança, aprender uns dos outros e criar um imaginário positivo que ilumine as mentes, aqueça os corações, restitua força às mãos». Deste modo evitaremos que a Igreja se torne Igreja-museu, bela mas muda, com muito passado e pouco futuro.

A Eucaristia, fonte de renovação da vida cristã

Na nossa Diocese de Leria-Fátima estamos a viver um triénio pastoral dedicado à “Eucaristia, encontro e comunhão com Cristo e os irmãos”. Acolhendo o convite do Senhor Ressuscitado para a sua ceia, onde se dá a nós como “o Pão da vida”, empenhamo-nos por redescobrir a Eucaristia como encontro pessoal com Cristo Vivo e fonte de vida cristã. Ele cria a comunhão e o sentido comunitário e impulsiona ao testemunho e à missão na sociedade. A escolha do tema deve-se à situação de “emergência eucarística” que sentimos como sinal de alarme. Constatamos a falta de amor, enlevo, encanto, atração e devoção a este sacramento, uma desafeição que leva a uma debandada por parte de muitos cristãos. Podemos apontar vários fatores para isto. Mas a razão mais profunda é o esmorecimento da fé. Quando a fé esmorece, esmorece também o amor a Cristo Vivo presente na Eucaristia e vice-versa. É pertinente a observação do papa emérito Bento XVI. “Toda a grande reforma da Igreja está de algum modo ligada à redescoberta da fé na presença eucarística do Senhor no meio do seu povo”. Peçamos hoje um grande amor a Jesus realmente presente na Eucaristia!

O Natal de Cristo é o natal da paz: para uma paz duradoira

Por fim, o nosso olhar volta-se para o dia da amanhã- dia mundial da paz – e para a mensagem do Papa Francisco “Para uma paz duradoira”. Não se trata de uma mensagem de paz fácil e romântica. Uma paz duradoira deve ser fruto de um trabalho conjunto, onde intervêm as várias instituições da sociedade e nos envolve pessoalmente a cada um de nós. Todos podem colaborar para construir um mundo mais pacífico partindo do próprio coração e das relações em família, passando pela sociedade e o meio ambiente, até chegar às relações entre os povos e entre os Estados. 

Para ser paz duradoira deve também ser construída segundo uma arquitetura adequada aos desafios contemporâneos. Para isso, o Papa propõe três instrumentos essenciais:

. O diálogo entre as gerações, como base para a realização de projetos conjuntos, com a criatividade  e ousadia das novas gerações e a sabedoria dos idosos;

. A educação integral como fator de liberdade, responsabilidade, cultura humanista do bem comum e da casa comum, da dignidade da pessoa humana e da fraternidade universal. Oh quão importante é educar o coração para cuidar das pessoas e do ambiente! Não bastam saberes teóricos ou aptidões técnicas;

. trabalho digno para todos, para uma plena realização da dignidade humana, que torne possível a cada um contribuir para a vida da família e da sociedade.

Tudo isto não pode existir sem a cultura do cuidado Esta será o grande desafio da sustentabilidade humana e espiritual da nossa qualidade de vida. Se deixarmos tudo à lei do mercado, os pobres e excluídos aumentarão. Devemos pôr o cuidado recíproco no centro do pacto social. Cuidar dos homens e da casa comum é concretização da fraternidade em Cristo. Lembremo-nos que o Natal de Cristo é o natal da paz. E 2022 será bom ano novo se cuidarmos uns dos outros como faz Nossa Senhora connosco.

Mas não podemos esquecer que a cultura do cuidado requer atenção, escuta, acolhimento, generosidade, partilha, sacrifício pelos outros. Há que reconquistar a virtude evangélica da amabilidade na convivência social.

Amabilidade, caminho para a paz

Face a tanta indiferença, violência e crueldade nas relações humanas e na convivência social, eis o que nos diz o Papa Francisco: “Hoje, raramente se encontram tempo e energias disponíveis para se demorar a tratar bem os outros…Contudo, de vez em quando verifica-se o milagre duma pessoa amável, que deixa de lado as suas preocupações e urgências para prestar atenção, oferecer um sorriso, dizer uma palavra de estímulo, possibilitar um espaço de escuta no meio de tanta indiferença. Este esforço, vivido dia a dia, é capaz de criar aquela convivência sadia que vence as incompreensões e evita os conflitos. O exercício da amabilidade não é um pormenor insignificante nem uma atitude superficial ou burguesa. Dado que pressupõe estima e respeito, quando se torna cultura numa sociedade, transforma profundamente o estilo de vida, as relações sociais, o modo de debater e confrontar as ideias. Facilita a busca de consensos e abre caminhos onde a exasperação destrói todas as pontes” (FT 224).

No último dia do ano manifestemos também nós ao Senhor o sincero arrependimento e o pedido de perdão dos nossos pecados “por pensamentos e palavras, atos e omissões”. A esperança de um mundo melhor  passa pela conversão e pelo perdão.

Ponhamos os nossos votos, anseios, necessidades e esperanças para o novo ano nas mãos e no regaço de Maria, nossa terna mãe. Deixemo-nos olhar, abraçar e conduzir por Ela. O seu olhar misericordioso volta-se para nós dizendo: “Queridos filhos, coragem! Estou aqui eu, a vossa mãe”! Santa Maria, Mãe de Deus e Mãe nossa, acompanha-nos no novo ano; ajuda-nos a libertar-nos da pandemia. Obtém-nos a bênção da paz para o mundo inteiro! Ámen!

† Cardeal António Marto, Bispo de Leiria-Fátima

Refª: CE2021B-013

HOMILIA
https://drive.google.com/file/d/17vUFSaHrt7_WcRGon4kQiBl2_TaMClQW
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