De 4 a 25 de outubro, está reunido em Roma o Sínodo dos Bispos sobre “A vocação e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo”. Após a auscultação aos fiéis de todo o mundo e uma sessão extraordinária, em outubro do ano passado, este é o momento de trabalho mais intenso. O relatório final será entregue ao Papa, a quem caberá tomar as decisões que achar oportunas para o bem pastoral de toda a Igreja.
A este propósito, fomos conversar com D. António Marto, Bispo de Leiria-Fátima, procurando perceber o que está verdadeiramente em causa neste Sínodo e qual a sua sensibilidade em relação aos temas em debate. Aproveitámos, ainda, para uma breve análise ao último biénio pastoral, precisamente dedicado ao tema da família.
Entrevista de Luís Miguel Ferraz
Fotografia, som e vídeo
de Diogo Carvalho Alves
(Ver: edição em vídeo)
Este Sínodo dos Bispos será dos mais mediáticos de sempre, muito por causa de questões como as uniões homossexuais ou a participação dos católicos recasados nos sacramentos. Acha que o Papa o convocou precisamente para debater estes assuntos, ou surgem apenas como consequência da abordagem ao tema da família?
O horizonte do Sínodo é muito mais amplo do que estas questões mediáticas. Recordo que, quando fizemos o inquérito ao Povo de Deus sobre a renovação da Igreja em Portugal, os temas mais focados foram a família e a juventude. Como primeira célula de uma sociedade, a família é a primeira a sentir os efeitos do abalo sísmico da atual crise socioeconómica, mas também cultural e espiritual. Portanto, era preciso motivar a reflexão na Igreja sobre os desafios que hoje se colocam à instituição familiar, desde a preparação para o matrimónio e da descoberta da família como vocação e missão, até à experiência concreta da relação familiar e do seu papel na sociedade.
Foi uma conclusão que o Papa tirou das visitas “ad limina” dos bispos de todo o mundo. Estamos a tratar do problema capital, do qual depende em grande parte a saúde e o bem-estar de uma sociedade. E exige um cuidado especial também da parte da sociedade civil e do Estado. Portanto, as tais questões mediáticas também têm lugar e razão de ser, mas não foi propositadamente para elas que o Papa convocou o Sínodo.
Na homilia de abertura dos trabalhos sinodais, o Papa Francisco lembrou que a Igreja tem uma missão de caridade, que não deve julgar nem fechar as portas, mas “cuidar dos casais feridos com o óleo da aceitação e da misericórdia”. Já no primeiro discurso aos bispos, pediu que se ouçam mutuamente e não se deixem intimidar pelas “seduções do mundo” ou as “modas que passam depressa”. Serão indicações a tentar a conciliação de posições mais extremadas?
Creio que o Papa quis, à partida, oferecer as “regras do jogo” ou “balizas”, para os padres sinodais não se perderem em disputas secundárias. Convida tanto os “rigoristas” como os mais “laxistas” a uma perspetiva evangélica de ler a realidade com o olhar da fé e o coração misericordioso de Deus.
Este pontificado é marcado pela misericórdia; debruça-se sobre as feridas da humanidade e, concretamente, as feridas da família ou as famílias feridas, propondo a misericórdia de Deus até ao limite, até onde ela possa ir. O problema neste caso é como conjugar e compatibilizar a verdade com a misericórdia. Não está em causa a doutrina sobre a indissolubilidade do matrimónio, mas o aspeto pastoral de como acompanhar e cuidar destas famílias que, mesmo no fracasso da relação matrimonial, querem continuar a viver a sua fé como membros vivos da Igreja.
Acha que o Papa poderá ter já uma solução pensada para essa conciliação?
O Papa não quererá decidir sozinho, nem condicionar a liberdade do debate, mas ilumina o caminho e procura especificar o tom que deseja para o Sínodo. Não é um parlamento onde se vá fazer uma conciliação de compromisso, nem uma arena onde se enfrenta um grupo contra outro.
Há quem use, de facto, essa expressão de “campo de batalha” e considere até a existência de grupos de pressão com “armas” pouco corretas. Foi a leitura que se fez, por exemplo, do caso de um monsenhor com funções no Vaticano ter revelado publicamente a sua ligação homossexual e acusado a Igreja de “homofobia institucionalizada”. O Patriarca de Lisboa comentou que os bispos não cederiam a pressões e o Papa pediu-lhes também que não se deixassem levar pelo ambiente de “conspiração”. Acha que há mesmo lóbis em torno deste Sínodo?
Esse caso concreto foi uma encenação bem orquestrada, para chamar a atenção. Mas não devemos entrar nesse “jogo” dos lóbis, que é desviar a questão. Os problemas são reais e têm de ser enfrentados na perspetiva da fé. No primeiro concílio de Jerusalém, como se relata nos Atos dos Apóstolos, levantou-se uma grande discussão entre eles e, depois, à luz do Espírito Santo, chegaram a um consenso de comunhão. Isso aconteceu em todos os concílios, também no Vaticano II. É normal existirem grupos de pressão, mas é uma pressão natural, nada de trágico ou dramático. É assim que a Igreja aprofunda as questões, ouvindo cada um, vendo a razão que tem, e chegando a uma conclusão, por vezes, inesperada. Penso que aqui vai acontecer o mesmo.
Sentiu esse tipo pressão junto dos bispos portugueses durante este ano de preparação do Sínodo?
Vimos na comunicação social diferentes tomadas de posição, mas não as vejo como forma de pressão. Acho que o inquérito ao Povo de Deus foi feito de maneira serena, participada, responsável e concreta. Foi um trabalho útil, a partir do qual se fez uma síntese que serviu como contributo para o instrumento de trabalho do Sínodo.
Também na comunicação social, surgiram notícias relativas a divergências na Conferência Episcopal Portuguesa. Houve no final alguma posição de consenso?
A Conferência debateu alguns destes assuntos, como pediu o Papa, e entre os bispos surgiu exatamente a mesma diversidade de pareceres que agora se vê no Sínodo. Mas sem qualquer polémica, num ambiente de diálogo sereno, respeitador e franco. Foram enviadas para Roma essas duas posições, uma que procura uma solução mais jurídica e outra que vai além disso para uma solução mais pastoral, de misericórdia.
Voltando ao ambiente sinodal, nas primeiras conferências de imprensa tem sido frisado por vários intervenientes que a doutrina da Igreja é clara e não se devem esperar “mudanças espetaculares”. Acha que se corre o risco de alguma “desilusão”, tendo em conta as expectativas reveladas por muitos católicos?
Penso que ninguém está à espera que a Igreja vá reescrever a sua doutrina, confirmada ao longo de milénios. Trata-se de dar ao Sínodo um tom mais pastoral na resposta às novas questões que se colocam, sem pôr em causa a fé, seja do ponto de vista evangélico, seja dogmático. O Papa tem reafirmado isso, para sossegar aqueles que pensam que se está a pôr em causa a fé da Igreja. Disso ninguém o pode acusar.
Nessa linha pastoral e quanto ao caso concreto do acesso à Comunhão pelos divorciados recasados, surgiu já no Sínodo a proposta de uma absolvição geral neste Ano da Misericórdia, como forma de “entusiasmar as pessoas a voltarem para a Igreja”. Acha viável a aprovação?
Isso pode ser dito por alguém com o coração muito generoso, mas não é assim que se resolvem os problemas da Igreja. Nem todas as situações são iguais e a misericórdia é sempre personalizada; cada um tem de a assumir.
O relatório de introdução ao Sínodo apresentado pelo cardeal Peter Erdö pareceu-me demasiado fechado ao debate e aprofundamento dessa questão do possível acesso dos divorciados recasados aos sacramentos. Mas logo de imediato o secretário especial do Sínodo, o arcebispo Bruno Forte, disse: “o Sínodo ainda está a começar e não se fez para não dizer nada de novo”. O Papa também deu o seu contributo para a liberdade da discussão, lembrando que os documentos de base são as suas intervenções no sínodo extraordinário de 2014 e o relatório que dele saiu, onde essas questões estão em aberto.
Por falar em intervenções do Papa, na homilia da Missa de abertura apontou a “solidão” como o principal problema do mundo atual e também das famílias. Disse concretamente que “hoje vive-se o paradoxo dum mundo globalizado onde vemos tantas habitações de luxo e arranha-céus, mas o calor da casa e da família é cada vez menor”. Concorda com este diagnóstico?
É uma chave de leitura que tem de ser abrangente: solidão no sentido de tantos meios de comunicação poderem ser obstáculo à comunicação, no sentido do vazio interior e do individualismo pós-moderno em que cada um só olha para o seu bem-estar e descarta o dos outros, como no caso dos idosos. A solidão pode ser também intergeracional, porque mesmo vivendo várias gerações na mesma casa, vivem em universos culturais diferentes e sem capacidade de se compreenderem.
A modernidade tinha valores fortes como a dignidade da pessoa, a solidariedade, a fraternidade e a causa do progresso. A pós-modernidade é marcada, sobretudo, pelo individualismo e a globalização da indiferença.
Como é que a Igreja pode responder a isso?
Isto só se pode combater com uma cultura da ternura, da proximidade, do cuidar o outro, do tempo de encontro dentro da família e entre as famílias. A Igreja tem de fazer uma educação das consciências e dos corações, uma nova evangelização a que o Papa chama a revolução da ternura e do amor, um aspeto ainda não muito explorado deste pontificado. Nesse sentido, é propício irmos viver os próximos dois anos aqui na Diocese sob o lema de Nossa Senhora como mãe da ternura e da misericórdia…
Vivemos num mundo ferido, mas também cínico, no sentido de ser indiferente, competitivo, violento, agressivo. A Igreja tem de ajudar a viver neste mundo complexo, por exemplo, relativamente aos diversos horários de trabalho dos membros da família, que precisam de saber organizar o tempo e ter possibilidade de se encontrarem. Por outro lado, a família tem também de contar com o apoio de um quadro jurídico, social e económico para poder realizar a sua missão, nomeadamente da transmissão da vida e resposta ao problema demográfico que hoje vivemos.
O Sínodo poderá ajudar a essa resposta? Quais acha que irão ser as principais indicações para a Igreja e para as famílias cristãs, ou quais gostaria que fossem?
Não me atrevo a fazer um prognóstico. O método de trabalho em grupos permite que se toquem todos os temas com profundidade.
O que eu gostaria… que saísse uma proposta de pastoral familiar global, que ajude a descobrir a beleza da família, convincente e que responda aos problemas concretos.
Um biénio dedicado à família na Diocese
“Não esqueci o rosto nem o nome de alguns,
pela lição que me deram…”
A Diocese de Leiria-Fátima viveu o último biénio pastoral, precisamente, à volta do tema da família. Conseguiu identificar quais os principais problemas, riquezas e expectativas concretas das famílias?
Os problemas são comuns a todo o Ocidente. Apercebi-me de que as famílias estavam à espera desta atenção da Igreja, de um novo olhar e de uma espiritualidade familiar que lhes dê ânimo, entusiasmo e esperança. Em toda a parte vi que existe uma grande estima pela família, mas, ao mesmo tempo, uma confusão derivada da cultura atual e a dificuldade de comunicar entre as gerações.
Um outro problema é a carência de preparação e de formação para a afetividade e a sexualidade, que hoje é vivida sem uma orientação espiritual.
Essa questão está ligada à preparação remota para o Matrimónio, uma das mais referidas ao longo destes dois anos. Foram tomadas medidas concretas nesse sentido?
Sim, esta preparação tem de ser a partir da própria infância, pois as crianças absorvem o que veem na televisão ou na internet e é preciso oferecer-lhes uma visão com valores e espiritualidade. Essa falha reflete-se depois na vivência do matrimónio, pois para aguentar uma família é preciso uma espiritualidade cultivada em cada dia. Sabendo que não há famílias perfeitas e todas têm defeitos, é preciso a espiritualidade para fazer a harmonia na aceitação das diferenças e limites de cada um.
Essa orientação foi dada para o cuidado da preparação remota e próxima do Matrimónio, como vocação e projeto belo, a nível pessoal e para a construção da sociedade. E também para o acompanhamento dos jovens casais na vivência dessa espiritualidade. A execução depende, agora, de quem está no terreno…
Numa avaliação geral deste biénio, sente que valeu a pena?
Estou aqui há nove anos e confesso que foi o tema pastoral em que encontrei mais adesão e entusiasmo por toda a Diocese. Sobretudo nos encontros vicariais, vi uma participação grande e entusiasta, com as pessoas a saírem alegres e satisfeitas.
Os testemunhos que ouvi das famílias levam-me a reafirmar o que disse muitas vezes nesses encontros: a evangelização das famílias há de ser feita por elas próprias; vale mais o testemunho das famílias do que um sermão do bispo, porque falam a partir da experiência vivida à luz da fé e do coração misericordioso de Jesus. Houve testemunhos encantadores… as famílias têm de assumir mais protagonismo como sujeitos da pastoral familiar.
E têm margem para isso?
Têm, muita! A questão, agora, é que as comunidades e os pastores tomem consciência disso, lhes deem o devido lugar e deixem que assumam as suas responsabilidades.
E o que considera ter ficado aquém das suas expectativas neste biénio?
Não podemos medir estas coisas em termos quantitativos. Há muito que se passa no interior e no coração das pessoas e das famílias. Mas poderei dizer que gostaria de ter visto a adesão de mais jovens, mesmo casais, que não conseguimos ainda conquistar para a descoberta desta beleza do matrimónio e da família.
Segue-se agora um biénio dedicado a Nossa Senhora. É o virar noutra direção, ou permitirá uma ligação e continuidade da aposta na pastoral familiar?
Em cada novo ano e novo programa, procuramos sempre fazer a ligação entre os diversos temas, iniciar processos e dinamismos, privilegiar o tempo de amadurecimento das consciências e dos projetos. Não pretendemos ver os resultados imediatos; é como a semente que se lança à terra e que precisa de tempo para florescer e frutificar. Não se modifica tudo de uma vez…
Concretamente, viramos a página, mas não esquecemos o tema anterior. Nossa Senhora, mãe de ternura e de misericórdia, como mulher, esposa e mãe que cuidou de uma família e realizou nela a sua missão, é uma luz para a realização familiar. Depois, como dissemos, é preciso introduzir ou reforçar hoje nas famílias esta cultura da ternura e da misericórdia, no sentido do cuidado e da atenção uns pelos outros, da gratuidade, do amor e da atenção, do perdão, da aceitação e da tolerância.
Compete a quem trabalha no terreno fazer essa ligação do tema proposto ao concreto da pastoral familiar. Por exemplo, pela promoção da oração em família, onde está muito presente a imagem de Nossa Senhora. Na carta pastoral não se pode dizer tudo, mas tocam-se vários aspetos e abrem-se perspetivas de caminho para os diversos setores pastorais.
Em conclusão, neste ambiente do Sínodo dos Bispos e início de um novo ciclo pastoral na Diocese, considera esta uma Igreja de futuro e de esperança?
Um pastor, quando olha para a sua Igreja, gostava de ver resultados imediatos. Mas é como um semeador que lança a semente com esperança e generosidade, deixando os frutos ao cuidado de Deus.
Mas vejo que a Diocese tem dinamismo e vida, com gente de fé muito grande e dedicação maravilhosa à Igreja e à missão. Não esqueci o rosto nem o nome de alguns, pela lição que me deram…