1 — A história das dioceses portuguesas nos séculos modernos carece de estudos científicos aprofundados e sistemáticos. Conhecendo-se, em geral de forma bastante informada, as biografias dos prelados que assumiram tais bispados, ou, ainda, aspectos particulares da acção pastoral de alguns deles — lembremos, por exemplo, o significado eclesiológico e teológico da obra intelectual do arcebispo D. Fr. Bartolomeu dos Mártires, figura merecedora do estudo rigoroso de D. Fr. Raul de Almeida Rolo (†2004), ou, ainda, dos estudos acerca das visitações na arquidiocese primaz bracarense assinados por Franklin Neiva Soares — nem por isso se dispõe de obras monográficas históricas, diocese a diocese, satisfatórias do ponto de vista das modernas metodologias heurísticas ou sequer da problematização científica actualizada e informada.
A Diocese de Leiria conta com alguns cimélios relevantes. Desde logo o conhecido “Couseiro”, em redacção cerca de 1657, de autoria ainda por estabelecer de modo cabal e definitivo, circulando em cópias manuscritas até conhecer uma primeira edição, em Braga, em 1868, mais tarde reeditado, em 1898, com valiosas elementos de actualização e preocupações gráficas de ilustração dos monumentos diocesanos. Pertence a Vitorino da Silva Araújo uma das mais significativas biografias de um prelado português, justamente a obra “Um Bispo segundo Deus ou Memórias para a Vida de D. Manuel de Aguiar, 17º Bispo de Leiria”, saída em Coimbra em 1885, dedicada de forma empenhada e apologética, sem que por isso perca objectividade informativa, à prelazia do mencionado antiste (1790-1815).
A História da Igreja em Portugal, de Fortunato de Almeida, cuja primeira edição remonta a 1910-1918, contém elementos essenciais que informam concisamente o passado diocesano leiriense. Não superam, de qualquer forma, a obra relevante nos anais historiográficos leirenenses, assinada por Afonso Zúquete com o título “Leiria — Subsídios para a História da sua Diocese”, publicada em Leiria no ano de 1943.
Permanece desde então como livro de referência a que aporta religiosamente todo o estudioso do passado eclesiástico do Bispado da cidade do Lis.
A segunda metade do século XX não conheceu nada de semelhante. O esforço de alguns investigadores, como Luciano Justo Ramos ou Alfredo de Matos, do ponto de vista da elucidação do passado diocesano leirenense, resultou bastante parcelar, além de que muitas das suas páginas mais relevantes se encontram adormecidas nos jornais locais especialmente das décadas de 1960-1970. Mais significativos se têm vindo a revelar os estudos rigorosos do Cónego Luciano Coelho Cristino dedicados, justamente, ao passado da Diocese de Leiria. Isto para além de alguns outros contributos, entre os quais os de Monsenhor J. Almeida Fernandes, de José Carreira e ainda os do autor deste artigo, a que deveremos associar os estudos do âmbito da história da arte da Diocese assinados por nomes como os de Gustavo Matos Sequeira, G. Kubler, Pedro Dias, Virgolino Jorge e Vítor Serrão. Mas continua a faltar uma necessariamente nova e actualizada história do Bispado de Leiria-Fátima.
De um modo muito simples, escreveremos que o fazer da história desta Diocese necessita de um profundo e amplo levantamento das fontes arquivísticas, com a respectiva publicação dos elementos diplomáticos relevantes, tanto quanto de estudos monográficos de investigação, para, só então, chegarmos ao desejável patamar do ensaio e da síntese fundamentada. Só por esses estudos se poderá aprofundar o conhecimento histórico necessário acerca da vida religiosa pretérita na Diocese, mormente as suas estruturas de organização institucional e carreiras eclesiásticas, os contornos da sua vida económica e social, os meios pastorais utilizados, os conteúdos eclesiológicos e a vida intelectual e artística do clero leirenense, as condutas, crenças e práticas religiosas e espirituais da população, os quadros monásticos diocesanos e os comportamentos da Igreja face ao poder político, judicial e administrativo do Estado.
2 — Os elementos documentais que apresentamos neste artigo, pouco conhecidos ou mesmo inéditos, elucidam alguns pontos relevantes da vida pretérita da Diocese do Lis. O Documento 1 é a bula de Paulo V, Decet Romanum Pontificem, de 9 de Outubro de 1614, pela qual foram integrados, na jurisdição episcopal dos Bispos de Leiria, as vilas de Alpedriz e de Aljubarrota. Por pedido do rei D. Filipe II, o Sucessor de Pedro, considerando a maior solicitude pastoral que do acto resultava para o povo cristão dessas localidades, bem como a necessidade de reforçar as fontes de rendimento do Bispado de Leiria, mormente as rendas da Mesa Capitular, decidiu-se a integrá-las nas fronteiras da Diocese então governada por D. Martim Afonso Mexia.
Recorda o papa Paulo V a não muito distante integração no Bispado dos territórios de Ourém e de Porto de Mós, em 1585, subtraídos ao Arcebispado de Lisboa não sem protestos e uma notória redução de proventos dizimistas para este.
Dízimos que, mau grado o património fundiário transferido, em 1545, de Santa Cruz de Coimbra para a Mitra leiriense, cujos rendimentos se revelaram moderados ou mesmo insuficientes face às necessidades reais de afirmação e organização da novel Diocese, constituíam proventos absolutamente necessários face às muitas despesas com projectos de infra-estruturação diocesana, mormente a sua catedral, o seu paço episcopal e outros santuários e igrejas do termo, para além do mantimento digno dos seus bispos e cónegos capitulares, que tinham de ombrear com outros seus pares residentes em dioceses circunvizinhas, mas largamente mais ricas e dotadas em fundos financeiros do que a de Leiria, uma das de menor renda em todo o Reino.
O Documento 2 apresenta-nos o bispo D. João de Nossa Senhora da Porta (1746-1760), futuro Arcebispo de Évora e Cardeal Patriarca de Lisboa, mercê dos seus compromissos políticos e eclesiásticos com o Marquês de Pombal, a assinar o contrato, datado de 5 de Setembro de 1756, com o Superior em Portugal da Congregação de S. Vicente de Paulo, Pe. João Gonçalves, em ordem a que esta Congregação da Missão se instalasse em Leiria, aqui abrindo uma Casa ou um Seminário. Para tanto, o Prelado doava à Congregação vicentina a Quinta da Paraíso, no sopé do monte de Nossa Senhora da Encarnação, garantindo-lhe, ainda, o financiamento e ajuda para a edificação material da respectiva casa. Aceite a doação pela mencionada Congregação e, ainda, autorizada pelo Papa, esperar-se-ia a sua instalação célere na cidade. Esta, contudo, não viria a suceder ou porque não tenha sido autorizada pelo poder régio, ou por outra razão que desconhecemos.
Sabemos que D. João de Nossa Senhora da Porta — título que expressa o seu apego à devoção muito viva no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, onde se fizera sacerdote e cónego regrante reformado, desse mesmo orago — foi, em Leiria, a cujo sólio episcopal subiu com 31 anos de idade, um prelado residente e empenhado no seu múnus. O seu acto em favor da Congregação de S. Vicente de Paulo não pode deixar de revelar uma segura simpatia por esse novo modelo de acção católica proposto pelos Lazaristas, protagonistas de uma visão instruída e esclarecida acerca da presença do clero no mundo, cuja formação intelectual apurada urgia, favoráveis, ainda, à elevação da consideração do estatuto e dignidade da mulher dentro e fora da Igreja, bem como de uma prática assistencial eficaz que ultrapassasse uma descomprometida caridade para com os mais pobres, doentes e necessitados.
Da atracção das novas congregações pós-tridentinas sobre os diocesanos leirenenses, dá-nos um breve testemunho o Documento 3, com data de 24 de Fevereiro de 1762. Por ele entrevemos o leiriense Fr. Joaquim Roberto como pupilo no Convento de S. Francisco de Paula, sito em Lisboa, ao que parece natural da freguesia da Barreira, em cujo limite detinha algumas propriedades rurais que faz vender ao Pe. Francisco Pereira Nobre, pároco de S. Miguel de Colmeias, por trinta mil réis.
Não menos reveladora, no Documento 5, é a informação colhida do testamento do Cónego Francisco Xavier de Figueiredo, Deão da Sé de Leiria, do ano de 1794, pela qual haveria expectativa, em Leiria, de uma possível instalação, eventualmente associada ao serviço hospitalar da Misericórdia da cidade, dos padres da Congregação de S. Camilo de Lellis.
Estas breves referências setecentistas, entre clérigos leirienses, a congregações claramente situáveis no espírito reformista tridentino, atestam, de algum modo, a sua actualização face às novas propostas apostólicas de vida religiosa, claramente empenhada num serviço social activo, que proliferavam na Europa católica do século do Iluminismo e do espírito racionalista. Significativo é, no entanto, que não se tenham verificado condições para a efectiva instalação dessas congregações em território leiriense. Permanece, contudo, o facto de elas terem tido adeptos entre o alto-clero da pequena urbe episcopal, cujo Lis, Francisco Rodrigues Lobo tanto amou.
Foram as Ordens Religiosas de raiz medieval, como os Franciscanos, os Dominicanos e os Eremitas de Santo Agostinho, as únicas que lograram erguer claustros nestas paragens entre os séculos XVI e XVIII. A vizinha influência de Cister, posto que localizada no Patriarcado de Lisboa, revela-se importante pela capacidade de atracção dos Mosteiros de Alcobaça e de Santa Maria de Cós sobre as vocações espirituais dos homens e mulheres naturais da região de Leiria. A pequenina Abadia de Santa Maria dos Tomaréis, no concelho de Ourém, como se sabe, não ultrapassaria a segunda metade do século XVI, pelo que a sua influência se paroquializou e secularizou nessas centúrias modernas.
Entre os novos conventos modernos de Leiria, citaremos, na sede do Bispado, o de Nossa Senhora da Graça ou de Santo Agostinho, de Eremitas Agostinhos, fundado em 157615 e o de Santo António dos Capuchos, franciscano, erigido em 165716. Na próspera vila de Ourém, integrada na Diocese de Leiria em 1585, instituir-se-á um Convento de Franciscanos Capuchos, da Província da Piedade, por 1600, contando doze frades cerca de 165717. Anos mais tarde, em 1673-76, na vila de Porto de Mós, foi erigido o Convento do Bom Jesus, entregue aos Eremitas Recolectos ou Descalços de Santo Agostinho.
Na serrana povoação de Minde, então do termo civil portomosense, estabelecer-se-iam, ainda, os Franciscanos no Hospício de Nossa Senhora da Arrábida.
Franciscanas terceiras foram, por seu lado, as religiosas que impulsionaram a actividade do Recolhimento dos Sagrados Corações de Jesus e Maria, anexo à antiga igreja de Santo Estêvão de Leiria, fundado na década de 1740, por influência de alguns clérigos seculares desta cidade, não assumindo, contudo, em rigor, a designação ou estatuto canónico de célula conventual.
Poderemos, deste modo, verificar que no capítulo dos quadros monásticos, a renovação e expansão dos claustros na Diocese de Leiria, entre os séculos XVI e XVIII, foi ditada mais pelas políticas endógenas dessas mesmas Ordens, do que por uma acção eficaz e consequente de renovação perspectivada pelo clero secular, em especial o corpo episcopal e canonical diocesano, cujas obras pastorais mais notáveis se arrimariam à assistência protagonizada pelas Misericórdias do Bispado, pela reforma e multiplicação dos núcleos paroquiais e pela assunção de grandes santuários regionais (Nossa Senhora do Fetal, Nossa Senhora da Encarnação e Jesus dos Milagres, entre os principais, sem esquecer os concorrentes não muito distantes situados já fora dos limites diocesanos, em que avultou o de Nossa Senhora da Nazaré).
3 — Os Documentos 4 e 5 mostram-nos, muito justamente, a capacidade económica de alguns cónegos de Leiria, no último terço do século XVIII. Pelo primeiro, datado de 1788, testemunhamos a instituição na Misericórdia da cidade de Leiria, pelo Cónego capitular Rafael Lopes Barreto, de uma capela pelas Almas do Purgatório e pela sua com uma dotação bastante substancial de um conto de réis.
Pelo segundo, lavrado em 1794, ratifica-se a doação e contrato estabelecidos com a mencionada Misericórdia pelo Cónego Francisco Xavier de Figueiredo, Deão da Sé de Leiria.
Senhor de considerável fortuna, o Deão Capitular revela-se um devoto empenhado na restauração do culto na velha capelinha de Nossa Senhora dos Anjos, na margem direita do Lis, para cujo altar-mor mandou fazer novas imagens e na qual queria que se celebrassem sazonalmente missas votivas, para além da presença permanente do Santíssimo. Eram muitos os santos da sua veneração, podendo destacar-se, pela sua maior actualidade à época, os nomes de S. Camilo de Lellis e de S. Francisco Xavier, para além de se revelar um fi el de grande sensibilidade mariana.
Vivendo numas “casas nobres”, com seu quintal, situadas atrás da igreja da Misericórdia, que deixava a esta instituição para alargamento das enfermarias e hospitais da convalescença da mesma, o Deão Francisco Xavier de Figueiredo mostra-se homem informado acerca do passado local, mormente a pretexto do passado da capela de Nossa Senhora dos Anjos, cujas informações históricas terá bebido nalguma cópia manuscrita em circulação do Couseiro, senão nalguma fonte arquivística primária. Era seu irmão Inácio Xavier de Figueiredo, matrimoniado que fora com D. Ana Joaquina Esteves Oriol, o que nos deixa entrever a sua ligação social a famílias da aristocracia brasonada da cidade. Uma parte substancial da sua fortuna derivava de foros e direitos dominiais que percebia sobre prédios urbanos e rústicos localizados na cidade e nos arredores.
Por estas duas últimas cartas, verificamos a íntima simbiose de interesses entre os cónegos capitulares da Sé e a Mesa administrativa da Santa Casa da Misericórdia de Leiria. Não deixa de ser significativo, na verdade, que bispos e cónegos leirienses tenham procurado influir de forma sempre muito relevante sobre os destinos e grandezas desta Misericórdia. Disso nos dão testemunho os elencos dos mesários e provedores da Santa Casa da Misericórdia de Leiria, como ainda o facto conhecido dela contar, invariavelmente, entre os seus Provedores, com os nomes dos “excelentíssimos, ilustríssimos e reverendíssimos” bispos da cidade.
Mas a acção pastoral dos reverendos cónegos capitulares de Leiria não se resumiria às suas ligações à rica Misericórdia leiriense. Integravam e animavam, ainda, os corpos de confrarias e irmandades locais e protagonizavam um papel religioso e espiritual de enorme responsabilidade nos destinos da Diocese. No entanto, o seu conhecimento, naturalmente, necessita de novos e mais aprofundados estudos históricos.