No arranque do ano académico-pastoral, o Centro de Cultura e Formação Cristã diocesano realizou, ontem (25.09.15), na aula magna do Seminário Diocesano, uma sessão de apresentação da encíclica “Laudato Si” (ELS).
Assistida por cerca de duas centenas de fiéis diocesanos, a reflexão contou com os contributos de D. António Marto, Bispo diocesano, do investigador Filipe Duarte Santos e de Margarida Alvim, responsável pelo projeto “Casa Velha – Ecologia e espiritualidade”.
Foi Pedro Gomes Valinho, diretor do CCFC, que abriu a sessão com uma breve introdução à encíclica “Laudato Si” (ELS), do Papa Francisco, sobre o cuidado da casa comum, apresentando três os oradores que ali trouxeram “pistas de leitura” para o documento pontifício.
D. António Marto foi o primeiro interveniente. Partilhou “algumas anotações para uma leitura global da encíclica” e deixou uma breve descrição sobre cada um dos capítulos da ELS, que recordou em breves trechos intercalados.
Um tema atualíssimo
O Bispo diocesano começou por sublinhar a pertinência daquela apresentação, pelo facto de coincidir no tempo com o início da Cimeira Mundial das Nações Unidas, que pretende fazer aprovar uma agenda com objetivos e metas de desenvolvimento sustentável até 2030 e com o discurso do Papa Francisco, na Assembleia Geral daquela organização, onde instou à aprovação de “acordos fundamentais e eficazes” na próxima conferência de Paris sobre o clima, que se realiza no final ano. A leitura e a meditação da encíclica torna-se ainda mais oportuna “nas vésperas destes encontros, onde, sentados à mesma mesa, todos os países dos mundo decidirão, não só o nosso futuro comum, mas se haverá ou não algum futuro para todos”, enfatizou o Bispo.
Sobre o título da encíclica “Laudato Si”, inspirado na evocação que São Francisco de Assis faz no “Cântico das Criaturas”: “Louvado Sejas Meu Senhor”, o prelado lembrou o “horizonte de contemplação orante e de comunhão com a nossa Terra” sobre o qual esta referência nos coloca.
D. António Marto apontou o desenvolvimento sustentável como o centro do discurso da ELS. “Esta questão não se refere apenas ao ambiente, mas também à orientação geral do mundo, aos seus valores e ao sentido e dignidade da vida humana.”
“Estas questões ecológicas nascem da constatação de que, hoje, a nossa irmã Terra é mal tratada, explorada e destruída. O Papa convida a escutar os gemidos da Terra e solicita a todos a uma conversão ecológica, assumindo a responsabilidade pelo cuidado desta nossa casa comum”, frisou.
Ver, julgar e agir
O desenvolvimento de uma “nova sensibilidade pelo ambiente” é algo que o Papa reconhece no documento pontifício, mantendo viva a esperança de inverter a rota de destruição”, constatou o Bispo diocesano.
“Nesta perspetiva de caminho de conversão no futuro renovado, o Papa põe, no centro da encíclica, o conceito da ecologia integral, como novo paradigma, que articula as relações fundamentais da pessoa humana consigo mesma, com os outros, com Deus e com a própria natureza.”
D. António Marto fez ainda notar a abordagem metodológica clássica que o Sumo Pontífice faz do tema da ELS, sob o método da ação católica: ver, julgar e agir.
De seguida, focou os aspetos principais de cada um dos seis capítulos que compõem a ELS.
Terminou, reforçando a necessidade de uma “conversão ecológica global e de uma cultura do cuidado, que seja capaz de permear a nossa sociedade, num desafio que é cultural, espiritual e educativo” com vista a poder “salvar a nossa casa comum”.
A “notável” contribuição da ELS e do cristianismo
Cientista enumera problemas e aponta alternativas
Pedro Valinho, D. António Marto, Filipe Duarte Santos e Margarida Alvim.
A intervenção de Filipe Duarte Santos, formado em geofísica e física nuclear trouxe ao debate uma perspetiva científica. Para além de investigador e professor na Universidade de Lisboa, dedica-se, desde os finais dos anos 80, ao estudo do ambiente, das alterações climáticas e do desenvolvimento sustentável.
Num ponto prévio, o especialista fez questão de sublinhar o facto da ciência moderna ter nascido “no seio de uma Europa cristã, que revolucionou o mundo e deu qualidade de vida às pessoas”.
Filipe Duarte Santos começou por apresentar os obstáculos ao desenvolvimento sustentável, através de um “quadro da insustentabilidade”, que caracteriza o mundo atual e através do qual fez notar: as desigualdades sociais económicas, a pobreza extrema e severa, a deficiente assistência médica e dos cuidados de saúde, a insustentabilidade dos sistemas de energia, a insegurança alimentar, a escassez de água e de outros recursos naturais e a perda da biodiversidade.
Uma solução integral e simultânea
“A solução para estes problemas só poderá ser atingida de uma forma integral e simultânea. No fundo, é a ideia que está na ELS, de uma ‘ecologia integral’, que tem em conta a questão das desigualdades, do ambiente e do desenvolvimento económico”, sustentou o investigador.
Partindo da perspetiva do “planeta finito” em recursos, o orador apresentou a reciclagem e a reutilização como caminho para a diminuição do desperdício no mundo.
Numa leitura da ELS a partir do seu olhar como homem da ciência, Filipe Duarte Santos enalteceu a o facto da encíclica do Papa Francisco ter tido a colaboração de cientistas e de ter tomado “uma posição que é muito importante para o nosso futuro e das gerações seguintes”.
“O Papa assumiu um conhecimento científico robusto que, se for seguido, será um passo muito importante para atingirmos um desenvolvimento sustentável.”
Iniciativas locais e o contributo da Igreja
Sobre o atual sistema económico e financeiro, o docente enumerou os aspetos que considera mais prejudiciais. “Para além de ter como pressuposto fundamental o crescimento económico, este sistema é predador de recursos naturais, tem dificuldade ou é incapaz de responder às expectativas de desenvolvimento dos países menos industrializados, de responder aos desafios ambientais de médio e longo prazo e agrava as desigualdades económicas e sociais, sendo cada vez mais global e dominante.”
Constatando o “enorme vazio ideológico de alternativas credíveis” à atual conjuntura e salientando a importância das iniciativas locais que promovem a proteção do ambiente, o investigador deu exemplos de soluções não sistémicas atuais, de caráter comunitário: bioregionalismo, comunidades intencionais, ecovilas e cidades em transição, e de caráter individual, através da simplicidade voluntária.
“É neste contexto que a ELS vem abrir um espaço novo, na sequência da notável contribuição histórica do cristianismo, de simplicidade, ascese, desprendimento dos bens materiais e trabalho para o bem do próximo”, concluiu.
Um olhar de esperança, um exemplo a seguir
Projeto “Casa Velha” engloba a ecologia e a espiritualidade
Na última intervenção da noite foi divulgado o projeto “Casa Velha”, que engloba a ecologia e a espiritualidade e que também apoiou a sessão de apresentação da encíclica.
Margarida Alvim, que dirige o projeto, fez uma breve leitura da ELS a partir da experiência prática daquela iniciativa, que apresentou através de um vídeo onde se ouviram testemunhos dos seus intervenientes.
Natural de Ourém, onde também tem sede o projeto “Casa Velha”, disse ter conseguido adquirir uma “visão integral do mundo” a partir do momento em que associou a sua profissão enquanto engenheira florestal, à questão do desenvolvimento sustentável e integral, recorrendo ao contributo de organizações da sociedade civil ligadas à Igreja.
“Trata-se uma casa que se tem vindo a alargar, com muitas pessoas e atividades diferentes… Coisas concretas e práticas que, no fundo, nos fazem experimentar o sexto capítulo da ESL, que nos fala da educação para a espiritualidade ecológica”, explicou.
Também a colaborar com a Fundação Fé e Cooperação (FEC), uma instituição da Igreja que promove o desenvolvimento humano integral, a oradora sublinhou a pertinência da ESL e destacou o diálogo gerado no mundo à volta das questões ambientais, devido ao documento pontifício.
Vídeo que apresenta a “Casa Velha”, exibido na Sessão de Apresentação da encíclica “Laudato Si”.
Todos têm um papel
Fazendo um paralelismo com a dinâmica do projeto que dirige e a ELS, Margarida Alvim destacou a necessidade de uma aposta na cultura do cuidado e do encontro, onde “todos podem participar e dar o seu contributo”.
“A partir de uma coisa que estava mal, como era o caso da quinta abandonada onde nasceu a Casa Velha, foi criada uma coisa nova. Por extensão, na nossa ‘casa comum’, que está doente, o nosso olhar tem de ser de esperança, numa perspetiva de mudança, em que a Igreja tem um papel relevante a desempenhar”, finalizou.
Seguiu-se um momento em que a plateia colocou algumas questões aos oradores. A sessão de apresentação terminou com um momento de oração orientado pelo Bispo diocesano. A discussão prosseguiu, em ambiente informal, num chá oferecido pela organização.
Capítulo a capítulo, através do olhar de D. António Marto
Capítulo 1 – “O que está a acontecer à nossa casa”
“É feita uma resenha dos vários aspetos da atual crise ecológica, a partir dos dados científicos mais recentes em matéria ambiental: as mudanças climáticas inéditas, que ameaçam a espécie humana; a água potável e segura como um direito; a destruição da biodiversidade; a dívida ecológica, que nos é apresentada com a ética das relações internacionais, ligada ao uso desproporcionado dos recursos naturais de países pobres por países mais ricos e, finalmente, a fraqueza das reações políticas ao nível internacional face a esta situação.”
Capítulo 2 – “O Evangelho da Criação”
“Mais do que falar da natureza, a fé cristã fala de criação, que pertence ao projeto do amor de Deus, onde cada criatura tem um valor e um significado próprio na sua existência. Este novo olhar à luz da fé, onde todo o universo material é uma linguagem do amor de Deus, faz derivar uma relação de comunhão universal, onde o Homem vive com a natureza e numa responsabilidade de guardar e aperfeiçoar o mundo.”
Capítulo 3 – “A raiz humana da crise ecológica”
“Vai-se às causas profundas da degradação ecológica atual, onde o Papa denuncia o ‘paradigma tecnocrático dominante’, que leva a uma exploração desmedida da natureza e que olha para ela apenas como um objeto, numa perspetiva consumista e em função do lucro. É proposta uma nova ´cultura ecológica’ e recomendado um espaço de debate e diálogo, onde o saber técnico se possa abrir às outras sabedorias, nomeadamente da religião.”
Capítulo 4 – “Uma ecologia integral”
“É abordado o lugar específico que o Ser Humano ocupa neste mundo e as suas relações com a sua realidade. Para além da ecologia ambiental, são tratadas as ecologias: económica, social, política, cultural e da vida quotidiana. Fala-se de um desenvolvimento sustentável ligado a uma solidariedade intergeracional e intrageracional.”
Capítulo 5 – “Algumas linhas de orientação e ação”
“Para sair desta espiral de destruição, o Papa oferece uma série de propostas, baseadas no diálogo e no debate transparente: sobre o ambiente na política internacional, para novas políticas globais e locais, sobre os processos de decisão no âmbito público e empresarial, entre a política e a economia.”
Capítulo 6 – “Educação e espiritualidade ecológicas”
“Este capítulo conduz-nos ao coração de uma conversão ecológica, que envolva todos os âmbitos: escola, família, meios de comunicação, catequese e até a própria celebração litúrgica. O Papa indica algumas linhas de orientação que apontam: para um novo estilo de vida, para uma educação ambiental e uma cidadania ecológica, através de exemplos práticos; para um amor cívico e político e para os sinais sacramentais, que mostram como a nossa matéria é assumida na relação com Deus.”
De que problemas ecológicos estamos a falar?
Cientista deixa uma lista
Filipe Duarte Santos, investigador na área da geofísica e física nuclear e dedicado ao estudo das alterações climáticas, deixou um inventário das principais questões ecológicas atuais, numa lista que dá que pensar.
O crescimento da população mundial, com um desenvolvimento que cria grandes desigualdades e que tem um forte impacto sobre o ambiente.
A existência de fronteiras planetárias em vários domínios que, ao serem ultrapassadas, fazem diminuir a qualidade de vida.
O envelhecimento da população mundial.
O agudizar das desigualdades e uma incorreta distribuição da riqueza mundial, em relação à distribuição da população, com a maior parte do capital condensado em poucos países (Europa e América do Norte).
O agravamento da escassez de água, sendo o sul da Europa é uma das regiões vulneráveis a esse agravamento.
O desaparecimento de muitas espécies. Embora haja um ritmo natural de extinção das espécies, aquele que se verifica atualmente é muito rápido, sobretudo devido ao desaparecimento dos seus habitats, degradados pelo indevido aproveitamento humano dos recursos.
A sobre-exploração dos metais, com a extração destes bens a registar um crescimento exponencial desde o princípio do século passado.
O aumento dos resíduos eletrónicos, provenientes dos telemóveis e computadores, que envolve um processo de tratamento e reciclagem muito prejudicial à saúde humana e realizado em países onde o trabalhador é explorado.
As alterações climáticas, provocadas pelo efeito estufa, que tem vindo a aumentar a temperatura global. Este processo físico é gerado pelo aumento drástico da concentração de dióxido de carbono, resultante de atividades humanas, sobretudo da queima de combustíveis fósseis.
A desflorestação, sobretudo nos países tropicais.
As secas e as inundações. Enquanto na Califórnia, na América do Norte, se faz racionamento de água, registam-se inundações no Bangladesh, numa realidade que pode fazer aumentar o número de refugiados climáticos.
Um acréscimo do número de eventos extremos nos últimos 30 anos, em que se destacam eventos relacionados com o clima.
A alteração dos registos da precipitação, registando-se um decréscimo provocado pela mudança climática.