Do ódio à desumanização (ou vice-versa)

A vitimização colectiva mantém viva a memória do ódio ao longo das gerações.

Sempre existiu e para sempre existirá. E continua a não reunir consenso no que respeita à sua natureza. Devido ao sangrento conflito israelo-palestiniano e tendo em conta o preocupante disparar de crimes e discursos de ódio um pouco por todo o mundo, tentámos compreender as raízes psicológicas do ódio, o qual tanto pode ser descrito como uma emoção, uma atitude ou um sentimento. Mas uma coisa parece certa: o ódio deriva de uma mentalidade “nós contra eles”, ao mesmo tempo que é um método simplificado para a difícil tarefa de gerir a diferença

POR HELENA OLIVEIRA

“A desumanização de um inimigo é uma táctica comum na guerra, na medida em que reduz as pessoas ao estatuto de animais ou autómatos, as quais e por isso não estão sujeitas às regras morais normais. É um método bem conhecido para persuadir os soldados a matar indiscriminadamente quando invadem um país/região. Ao caracterizar o inimigo como não sendo realmente humano, mas sim digno de ódio e desprezo, os líderes podem tentar justificar os seus actos. A violência baseada no ódio pode levar a traumas persistentes entre gerações, como a investigação tem demonstrado. E pode ser mais fácil encorajar acções de ódio do que evitá-las”. (Lee Chambers, psicólogo)

 Portugal. Vila Nova de Gaia. Novembro de 2023. São dezenas as cruzes suásticas que apareceram pintadas no centro de Vila Nova de Gaia. O símbolo, de carácter anti-semita, é acompanhado pela frase “Free Palestine”, a qual voltou a ser proferida em força depois do ataque do Hamas a Israel no dia 7 de Outubro. Tal como na cidade nortenha, e enquanto o cruel conflito se desenrola no Médio Oriente, os crimes de ódio contra judeus, muçulmanos e árabes estão a aumentar significativamente noutras partes longínquas do globo, com um cenário de guerra aberta também no espaço público.

As tensões étnicas que se alastram e provocam retaliações contra grupos inteiros de pessoas não são uma reacção invulgar às hostilidades – mesmo que estas ocorram a milhares de quilómetros de distância, afirma Gordana Rabrenovic, professora de Sociologia e directora do Brudnick Center for the Study of Violence and Conflict da Northeastern University, cuja missão é procurar soluções para os problemas de hostilidade e ódio resultantes de conflitos e diferenças intergrupais. “Somos um povo muito pluralista e, neste tipo de conflito, a nossa etnia torna-se um marcador de diferença”, diz.

Como tem vindo a ser noticiado diariamente, os eventos trágicos do conflito israelo-palestiniano estão a reforçar ideologias de ódio em todo o mundo – nomeadamente o anti-semitismo e a islamofobia. Nos Estados Unidos, a polarização é uma das principais razões para a violência, diz Rabrenovic, que estuda estes conflitos há anos e que é co-autora do livro “Why We Hate” em conjunto com o professor Jack Levin, especialista em pesquisa sobre assassínios, preconceitos e ódio, após os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001. Como narrativa central, o livro reflecte sobre se o ódio é uma característica humana inata ou um comportamento aprendido.

O fenómeno do ódio manifesta-se desde tempos imemoriais e continuará decerto a fazer parte da nossa (des)umanidade É protagonista de filmes, livros, pinturas e de todas as formas de expressão humana, tal como tem sido objecto de análise por parte de filósofos, psicólogos, psiquiatras, neurocientistas, cientistas sociais e profissionais de outras áreas do saber. Todos os dias somos inundados com imagens, actos ou discurso de ódio. Mas a verdade é que com a guerra entre o Hamas e Israel e com as histórias horrendas de pura malevolência a que assistimos em directo, que depois “contagiam” os demais em outras partes do mundo, é difícil não nos questionarmos como é possível o ser humano perder toda a sua racionalidade, respeito e compaixão pelo outro e, simplesmente, odiar.

Em termos gerais e de acordo com vários actores, o ódio é um método simplificado para a difícil tarefa de gerir a diferença. Para cada um de nós, há diferenças que são importantes para a nossa comunidade e para nós próprios. Nalguns casos, são a religião, a língua e a raça e há alturas em que as diferenças à nossa volta se tornam demasiado difíceis de suportar. Essas diferenças ameaçam o nosso sentido do “eu” e as nossas noções de identidade de grupo e tornam-se ainda mais agudas quando coincidem com traumas, violência e/ou humilhação. Adicionalmente, dizem os especialistas, a experiência da diferença pode passar da identidade e do orgulho para o terrorismo e o ódio e, em vez de aceitarmos a instabilidade de uma divergência, optamos por odiar.

Nunca existiu e continua a não existir consenso entre os estudiosos no que respeita à natureza do ódio, o qual tem sido amplamente descrito como uma emoção, mas também como uma atitude ou um sentimento. Alguns académicos acreditam que o ódio é uma versão extrema da raiva ou da antipatia; outros descrevem-no como uma mistura de emoções como a raiva, o desprezo e o nojo; e outros consideram-no como um sentimento distinto e único. As teorias também divergem no que respeita às suas descrições dos antecedentes, factores desencadeantes, funções e resultados comportamentais.

Sabe-se igualmente, e por exemplo, que o ódio encarnado pelo Ku Klux Klan e por outros grupos extremistas remonta muitas vezes a décadas ou mais, transcendendo gerações e, por vezes, permanecendo adormecido até encontrar um novo estímulo. E é o que está acontecer no presente conflito no Médio Oriente cujas raízes profundas envolvem factores históricos, religiosos e culturais, que facilmente são transmitidas de uma geração para a outra.

Num ensaio publicado pela aeon fruto da questão “Como é que odiar alguém se compara com a raiva, o desprezo ou o nojo?”, os participantes de um estudo alargado e em comparação com a aversão ou a raiva em relação a indivíduos específicos, “classificaram as suas experiências de ódio como mais duradouras, consideraram os indivíduos odiados como mais ameaçadores para a sociedade e expressaram uma maior tendência para se envolverem em comportamentos como confrontá-los, prejudicá-los ou ofendê-los”. Os resultados do estudo indicam igualmente que as pessoas também consideram os indivíduos que odeiam como mais ameaçadores para elas do que os indivíduos em relação aos quais sentem outras emoções negativas. “Estes resultados sugerem que o ódio é um sentimento distinto, mas também que partilha algumas características com as outras emoções, especialmente com o desprezo e o nojo”.

Esta definição vai ao encontro daquela que é defendida por muitos psicólogos que acreditam que o ódio [apesar de distinto] é uma emoção secundária, uma resposta aprendida através de experiências pessoais, condicionamento social e processos cognitivos, ao contrário das emoções primárias como a raiva, o medo ou o nojo, que são fundamentais para a evolução e adaptação, sendo universais, partilhadas por todas as culturas e estando presentes desde a infância.

Mas de acordo com o paper “Why we hate”, publicado por quatro académicos (dois israelitas e dois holandeses), e bastante citado nos demais estudos sobre o ódio, a maioria dos autores que sobre o mesmo escreve concorda que este é um poderoso fenómeno emocional negativo, embora nem todos os estudiosos o definam como uma emoção. Presume-se que o ódio se desenvolve quando outros maltratam ou humilham alguém, ou cujas acções deliberadas se tornaram um obstáculo aos objectivos de outrem. O ódio partilha obviamente características com várias outras emoções negativas, especialmente a raiva, o desprezo ou a repugnância moral [ou nojo].

E para tornar a demarcação com outras emoções ainda mais complexa, defende-se igualmente que os sentimentos de ódio sejam frequentemente acompanhados por outras emoções negativas. Por exemplo, os indivíduos podem referir ódio se avaliarem um acontecimento como contraditório relativamente aos seus objectivos e interesses (relevante para todas as emoções negativas), se considerarem o comportamento do outro como injustificado e injusto (característico da raiva), moralmente inferior (característico do desprezo) ou moralmente nauseabundo (protótipo do nojo). Por outras palavras, a raiva, o desprezo, a repugnância, a humilhação, os sentimentos de vingança e o ódio podem ser desencadeados em reacção a um acontecimento semelhante, nomeadamente quando a acção do outro é vista como negativa, intencional, imoral ou má.

“Enquanto a raiva é habitualmente sentida em relação a indivíduos, o ódio é frequentemente sentido em relação a grupos”, dizia Aristóteles

Enquanto humanos, não nascemos com a capacidade de odiar. As crianças pequenas podem manifestar emoções negativas como a raiva, a frustração ou a aversão a determinadas pessoas ou situações, mas só quando são mais velhas e conseguem compreender e articular sentimentos complexos é que começam a odiar.

Assim, e como também já enunciado acima, o ódio é frequentemente influenciado ou despoletado por factores sociais que moldam as nossas crenças e atitudes. A nossa educação, o nosso passado cultural e a sociedade em que vivemos podem desempenhar um papel significativo na promoção do ódio, na medida em que os seres humanos desejam estrutura e certeza nas suas vidas. Para o conseguir, as pessoas dividem-se naturalmente em grupos internos (círculos sociais onde todos sentem que pertencem uns aos outros) e grupos externos (pessoas que existem fora dos círculos sociais e que normalmente não são bem-vindas). E quando as pessoas declaram o seu desagrado pelos outros, tal ajuda-as a compreender as fronteiras entre os diferentes círculos sociais. Este é um poderoso factor de motivação para as pessoas criarem laços, porque satisfaz a sua necessidade de se sentirem ligadas aos outros.

Assim e fundamentalmente, o ódio deriva de uma mentalidade “nós contra eles”, uma inclinação psicológica para nos identificarmos com o nosso próprio grupo e vermos os outros como diferentes ou ameaçadores.

“Temos narrativas contraditórias sobre o que se está a passar, dependendo do lado com que se está a falar”, afirma a socióloga Gordana Rabrenovic. “Nós, humanos, temos dificuldade em lidar com a incerteza e este tipo de categorias torna-a mais certa. É mais fácil acreditar que sabemos quem é bom e quem é mau”, acrescenta

Por outro lado, são vários os estudos que mostram que os bebés conseguem distinguir entre rostos brancos e negros e que, por volta dos oito ou nove anos, as crianças compreendem as implicações sociais da raça, incluindo os estereótipos. Se não for controlada, esta mentalidade leva a preconceitos implícitos dentro de uma sociedade ou cultura – o que tem provocado conflitos, divisões e sentimentos de ódio com base na religião, etnia e nacionalidade ao longo da História. Basta pensar em inúmeros exemplos como a Inquisição, os conflitos raciais e étnicos como a escravatura, o colonialismo e o apartheid, ou as ideologias políticas que alimentaram o ódio, como o fascismo e o totalitarismo.

A dinâmica de grupo e o desejo de integração pode levar as pessoas a adoptar e a amplificar opiniões odiosas para obterem aceitação ou manterem a sua identidade num determinado círculo social. Além disso, a competição por recursos, poder ou estatuto pode alimentar a animosidade. Por outro lado, quando alguém novo entra num grupo, especialmente se estiver numa posição de influência, muitas pessoas começam imediatamente a enredar coisas negativas sobre essa pessoa, porque temem que esta altere a dinâmica do grupo. Partilhar o ódio contra a nova pessoa é uma forma de o grupo existente reforçar os seus laços em defesa contra quem vem de fora.

Adicionalmente, as raízes psicológicas do ódio são complexas e multifacetadas. Muitas vezes são provenientes de experiências pessoais negativas em que a identidade ou as crenças da pessoa são atacadas. Essas experiências podem gerar raiva profunda, ressentimento e medo.

paper “Why we hate” acima referido cita alguns estudos anteriores sobre a partilha social que concluíram que as pessoas que são vítimas de violência e ferocidade e que, por isso, sofrem um trauma colectivo, partilham frequentemente a sua experiência emocional com outros membros do grupo. Como afirmam os autores, em conflitos que parecem não ter solução – como o eterno conflito israelo-palestiniano -, as narrativas colectivas são dominadas pela memória da vitimização passada e pela violência intergrupal em curso. Assim, a vitimização colectiva evoca a partilha de sentimentos sobre o alvo do ódio com outros semelhantes e saber que outros membros do grupo vivenciam um acontecimento de forma similar reforça ainda mais a experiência e a expressão das próprias emoções.

Para além da vitimização colectiva manter viva a memória do ódio ao longo das gerações, pode também orientar a avaliação de acontecimentos futuros. O conhecimento acumulado do grupo sobre o comportamento imoral e violento de um grupo externo afecta a avaliação do comportamento futuro, confirmando assim o sentimento de que o grupo externo é uma entidade maliciosa homogénea. Aos olhos daqueles que se vêem como parte de um grupo vitimado transgeracionalmente, o grupo externo é malicioso e o facto de o comportamento do grupo exterior ser considerado consistente ao longo das gerações reflecte as suas características negativas inatas.

Tentar explicar o que consideramos inexplicável é tarefa árdua. E a verdade é que todos os dias assistimos a actos e manifestações de ódio sem que os consigamos minimamente compreender.

Por fim, e tal como afirmava o poeta, escritor e diplomata James Russel Lowell, “as pessoas nunca compreendem aqueles que odeiam”.

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