Há 90 anos que o quinto domingo da Quaresma está reservado no calendário da diocese de Leiria-Fátima para a sua peregrinação. Embora o número dos peregrinos que fazem o percurso a pé desde as suas casas até ao Santuário da Cova da Iria tenha reduzido, nem por isso deixam de ser avistados grupos de diocesanos que, pela madrugada e bem identificados pelos coletes refletores, vão até àquele local de devoção a Maria. Há quem diga essa diminuição de número tem a ver com a proximidade do Santuário, como há quem ache que é para uma melhor participação no programa proposto. Seja qual for a razão, este dia continua a ser um dos pontos altos da devoção a Nossa Senhora.
Chegámos a Fátima por volta das 8h00 e fomos ao encontro de um desses grupos que também cumpria os últimos metros da sua peregrinação. Pelo ar que aparentavam, a noite não tinha sido fácil, mas, mesmo assim, deixavam transparecer a emoção da chegada. Não era um grupo muito grande: contámos sete, mas não estavam todos, já que alguns deles se tinham atrasado devido a dificuldades físicas. Afinal, o dia anterior tinha sido de trabalho “até às tantas” e a mudança da hora ter calhado nessa madrugada também não ajudou nada.
Peregrinos com marcas do caminho
Este grupo de catequistas veio da paróquia de Amor. As razões por que o fizeram serão as mesmas dos inúmeros grupos que, àquela hora do dia 26 de março, estavam também a chegar. “Lembrámo-nos de fazer esta peregrinação num jantar de catequistas que tivemos”, confidenciou um dos elementos, acrescentando que “era uma ocasião propícia para estarmos juntos e rezar, pois são momentos assim, que nos dão forças para continuar a nossa missão”. A noite tinha sido madrasta para eles: para além dos 30 quilómetros calcorreados, a borrasca que se se fez sentir atravessou-se no caminho e na própria pele. “Não foi fácil”, diziam enquanto se descalçavam para enxugar e arrefecer os pés. Em alguns deles, dos pés, eram visíveis as marcas da caminhada, que se comprovavam pelo coxear dos que tinham as bolhas em estado avançado. O que ajudou a confortar o corpo e coração, também foi um bolo de laranja caseiro que a catequista que tinha trazido o carro de apoio confecionara no dia anterior. Aí, lembraram alguns episódios que tinham vivido em grupo, nomeadamente a celebração da Via Sacra: “deve ter sido o momento mais importante e que mais sentimos; os textos eram atuais e, por isso, pareciam escritos para nós”.
Ainda tiveram tempo para beber um café num dos estabelecimentos próximos do recinto, antes de integrarem o programa oficial no momento da saudação a Nossa Senhora e oração do terço. Aí, só tinham de arranjar um sítio onde pudessem estar um bocadinho mais instalados para que as dores do caminho não impedissem a melhor participação na celebração da Eucaristia que teria início às 11h00 no altar do recinto.
Os túmulos do desânimo
Pela primeira vez, D. José Ornelas presidiu à Peregrinação Diocesana. Há um ano, mesmo sendo já bispo de Leiria-Fátima, uma viagem a Roma tinha-o impedido de estar e disso se lembrou o prelado quando começou a sua homilia.
Os textos da Liturgia da Palavra foram os naturais pontos de partida para a prédica, com destaque para o episódio da ressureição de Lázaro em que “no centro desta mensagem encontra-se o encontro de Jesus com uma família que está de luto pelo seu irmão, uma família que Jesus ama muito, onde o seu afeto era também retribuído e onde Ele ia com agrado, até com os seus discípulos”. D. José Ornelas explica que aquele episódio ajuda a ilustrar o significado da morte diante da fé e como Jesus faz com as irmãs de Lázaro um caminho para entender os momentos de dor demasiado forte. “Jesus não fica indiferente à morte de Lázaro”, explica o prelado. “Ele comove-se e chora pelo amigo morto, não é um teatro, mas Ele não vem simplesmente apresentar pêsames às irmãs do morto, vem mostrar-lhes qual é o caminho de Deus para ele e para todos”. Portanto, os gestos de Jesus fazem entender que a morte não é o fim, essa é a primeira grande mensagem. “Não prendam os vossos defuntos e a vossa vida por detrás de pedras, Deus é maior do que a morte”, acrescentou D. José.
Continuando a homilia, referiu a primeira leitura do texto de Ezequiel para explicar que o povo de Israel tinha-se esquecido de Deus, estava no exílio, desmotivado, desorientado. Por isso, o profeta mostra que a situação presente é resultado da falta de proximidade com Deus. “Eles afastaram-se de Deus, mas Deus não se afastou deles”, desenvolveu, explicando que “é preciso empenhar nunca sociedade mais justa, mais fiel ao projecto de Deus”.
Os túmulos do faz-de-conta
O bispo de Leiria-Fátima aproveitou a temática das leituras para referir o assunto que tem andado na ordem dos dia. “O tema dos abusos sexuais tem abalado muitas pessoas, com grande eco nos órgãos de comunicação e, para muitos, abalou a credibilidade da própria Igreja”. Isso explica, tal como no tempo de Ezequiel, “os sentimentos de crítica, de preocupação, de desânimo a respeito da Igreja”. E como na situação de luto da família de Lázaro, “muitos se perguntam-se onde está o Senhor da Igreja”. D. José Ornelas admite que “muitas pessoas perderam mesmo o interesse de participar na vida da comunidade, mas tudo faremos para que estas situações não se repitam e para que as nossas comunidades sejam expressão de carinho verdadeiro e espaços seguros para o crescimento dos mais pequenos e mais necessitados de proteção e de ajuda”. Conclui que “é preciso abrir os túmulos do faz de conta, do encobrimento”.
O prelado teve ainda tempo para fazer referência ao caminho sinodal e à Jornada Mundial da Juventude. No que diz respeito ao primeiro, “o caminho sinodal que empreendemos durante este ano identificou deficiências, mas lançou igualmente sementes de esperança e de transformação à luz do Espírito do Senhor”. Acrescentou que não foi mais um acontecimento, mas um estilo de ser Igreja em que todos participam e caminham juntos, guiados pelo Espírito do Senhor. Relativamente à JMJ, refere que “é um convite da Mãe-Igreja, pela boca do Papa”, que se repete nesta peregrinação onde Maria “convida-nos a fazer o mesmo, porque há notícias novas, belas e importantes a levar”.
D. José Ornelas finalizou a sua homilia com palavras de ânimo: “Não podemos parar, desanimar, cansar. Temos dificuldades, temos desafios e grandes; temos caminho para andar. Jesus não prometeu que o caminho seria fácil. O que assegurou é que estaria connosco até ao fim dos tempos. Ele passou pela morte e pelo túmulo, mas está vivo e guia-nos na história pessoal, de família, de comunidade, de Igreja, de humanidade. Abramos as portas dos túmulos do nosso desalento, comodismo e ceticismo.”