Em tempos normais, a Catedral de Leiria não teria lugares sentados suficientes para acolher todos os fiéis que quisessem participar na celebração. E não seria caso para menos. Por duas razões: o dia era de festa jubilosa para Igreja em geral e, em particular, para a Diocese de Leiria-Fátima, e a cerimónia é, por infelicidade para a mesma Igreja, cada vez mais rara. Como os tempos são de rigoroso distanciamento social por razões sanitárias, a Sé teve a assembleia que pôde com as devidas precauções. Assim, muita gente, familiares e amigos, mesmo querendo estar presente, ficou de fora.
No domingo dia 26 de julho, Leiria-Fátima acolheu mais um membro para o seu presbitério. O Jorge Fernandes, do Crato, foi ungido no ministério do diaconado. A caminho, está também o Micael Ferreira, de Monte Redondo, que foi, na mesma ocasião, instituído no ministério de leitor. Para percebermos ainda melhor a importância deste momento para a vida da Igreja, ouvimos dizer que, na melhor das hipóteses, prevê-se que esta celebração se repetirá apenas por mais duas vezes na próxima dezena de anos.
O tesouro
Nem de propósito se ouviram as sucintas parábolas do evangelho lido na celebração — “o reino de Deus é semelhante a um tesouro escondido num campo”. A evidência do cada vez menor número de vocações sacerdotais, inversamente proporcional à sua importância, também se pode ver nas entrelinhas do trecho bíblico. E não é por acaso que o cardeal D. António Marto começava a homilia com a interrogação “vale a pena seguir a Jesus, comprometer-se com Ele? Ser cristão tem valor?”. O bispo de Leiria-Fátima insistiu: “venderam-me títulos de lixo ou enfiaram-me o barrete? Ou será coisa de loucos, como disse o governador Festo ao apóstolo Paulo: “Paulo, estás doido, a tua sabedoria fez-te perder o juízo”.
Em boa verdade, só se dá a sua real importância ao tesouro que é o próprio Jesus Cristo, quando este é descoberto. Tudo o resto passa a ter uma importância relativa, como exemplificam os personagens das parábolas que “decidem vender tudo para tudo investirem no que descobriram”. D. António explica que “é uma decisão que implica sacrifício, desprendimento e renúncias, mas o que aqui verdadeiramente conta, não é o que se deixa, mas o que se encontra, o que se recebe”.
Outro pormenor importante é a alegria que se apodera de quem encontra um tesouro. Nas palavras que dirigiu explicitamente aos dois rapazes que neste dia davam mais um passo na sua opção por Jesus Cristo, D. António Marto pediu-lhes para serem “testemunho e exemplo desta alegria para os jovens da nossa diocese! Quando vos perguntarem se ser cristão vale a pena, não façais um discurso; demonstrai com a vossa atitude que vale a pena!”.
A palavra
Um dos sinais, tanto do rito da ordenação diaconal como da instituição do leitor, é a entrega da Palavra. No caso do leitor, o candidato recebe uma Bíblia, enquanto que o diácono recebe o livro dos Evangelhos. A partir da centralidade da Palavra, o Bispo referiu que “o primeiro alimento da vossa sabedoria deverá ser a escuta de Deus e da sua Revelação. Sede enamorados da Palavra. Alimentai-vos dela sem cessar. Perscrutai-a, com sede e amor, em todas as suas profundidades. Deixai-vos iluminar por Deus para que o vosso caminho e as vossas opções sejam conformes à sua santa vontade”. Para isso, ajuda o exemplo de Salomão, referido na primeira leitura do dia, exemplo que se estende a todos, pais, educadores, profissionais, sacerdotes e governantes. O Salomão “não pede vida longa nem riquezas, mas um coração sábio capaz de governar o povo com justiça e discernir o bem e o mal”, refere D. António Marto.
A esperança
Ao terminar, o prelado chamou a atenção para as normais dificuldades que os dois ministros terão no seu percurso. “A missão confiada conhecerá fadigas, dificuldades, tribulações, a cruz de cada dia”, mas garante que Deus “estará sempre a nosso lado e nos nossos corações para agir através de nós e da nossa fraqueza. As provações servirão para nos purificar, para amadurecer na fé e em humanidade, para nos tornar mais humildes e disponíveis e servir melhor a Deus e o povo fiel.”
Homilia: texto integral
Jesus Cristo, nosso tesouro e nossa alegria
Hoje é um dia de bênção e de alegria para a nossa Igreja diocesana enriquecida com o dom da ordenação de um diácono e de uma instituição no ministério de leitor.
Neste clima de alegria quero saudar desde já o Jorge Fernandes e o Micael Ferreira juntamente com os seus pais e familiares, todos os padres concelebrantes, os seminários de Leiria e do Patriarcado de Lisboa com os seus formadores e seminaristas, as comunidades de origem e de estágio pastoral, todos os demais fiéis aqui presentes.
Na palavra de Deus proclamada podemos reconhecer a carta que Deus envia aos nossos candidatos a Diácono e a Leitor para falar ao coração de cada um, neste dia de graça tão importante para a sua vida. Desejo sublinhar uma tríplice mensagem a partir dos textos que escutámos.
O nosso tesouro é Cristo vivo
Com as parábolas do tesouro escondido e da pérola preciosa, Jesus procura responder à pergunta que assalta e sobressalta os discípulos, os de ontem como os de hoje. Ao verem a adversidade e o pouco êxito da missão interrogam-se: vale a pena seguir a Jesus, comprometer-se com Ele? Ser cristão tem valor? Em termos modernos: venderam-me títulos de lixo ou enfiaram-me o barrete? Ou será coisa de loucos, como disse o governador Festo ao apóstolo Paulo: “Paulo, estás doido. A tua sabedoria fez-te perder o juízo”(At 26, 24). Isto aplica-se também à vocação sacerdotal!
As duas parábolas querem dizer que o Reino de Deus presente em Jesus, o próprio Jesus em pessoa é o tesouro e a pérola de valor incalculável e incomparável, vale mais que tudo. Quem conhece e encontra pessoalmente Jesus, fica atraído, fascinado por tanto amor, ternura, misericórdia, verdade, beleza, esperança e paz. Ele é o grande tesouro. Não há igual nem mais precioso que ele. Quem o encontra sente-se tocado no mais íntimo de si. Descobre que muda a vida. Nada pode ser como antes. Ele é o caminho, a verdade e a vida verdadeira. Agora sabemos porquê e para quem viver!
Face à descoberta inesperada, o camponês e o comerciante argutos dão-se conta de que é uma oportunidade única, a não perder. A avaliação do valor incomparável leva-os a uma decisão corajosa e inadiável. Decidem vender tudo para tudo investirem no que descobriram. É uma decisão que implica sacrifício, desprendimento e renúncias. Mas o que aqui verdadeiramente conta, não é o que se deixa, mas o que se encontra, o que se recebe. O seguir a Jesus vale este sacrifício. De resto, quantas outras vezes estamos dispostos a vender tudo, mesmo a alma, para possuir o que nos interessa!
O problema é se nos interessa, verdadeiramente, o Senhor e a Sua amizade e se conseguimos entender a alegria e a plenitude de vida que nos é “inesperadamente” apresentada, como inesperadamente se apresentaram o tesouro ao camponês e a pérola ao comerciante. É esplêndido o comentário de João Crisóstomo: “Com estas duas parábolas aprendemos não só que é necessário libertar-nos de todas as outras coisas para abraçar o Evangelho, mas que devemos fazer isso com alegria. Quem renuncia ao que tem, deve estar persuadido de que é um ganho e não uma perda… Na verdade, quem possui o Evangelho sabe que é rico“.
A primeira reação de quem encontra um tesouro é a alegria. A felicidade do encontro com Cristo transparece na alegria que só Ele pode dar. Transparece em cada rosto, cada palavra, cada gesto, mesmo nos mais simples e quotidianos. Transparece o amor que Deus nos deu em Jesus. É a alegria do evangelho que enche o coração e a vida inteira de quantos se encontram com Jesus. É a alegria de cada um de nós. É a vossa particular alegria, caros Jorge e Micael, neste momento. Sede testemunho e exemplo desta alegria para os jovens da nossa diocese! Quando vos perguntarem se ser cristão vale a pena, não façais um discurso; demonstrai com a vossa atitude que vale a pena!
O dom da Sabedoria
A primeira leitura narra a experiência bela e exemplar do jovem rei Salomão. Mostra-nos como Deus não deixa faltar o dom da sabedoria necessária para realizar a missão que confia a cada um. Salomão sente que a responsabilidade que pesa sobre os seus ombros é demasiado grande para um jovem rei: “sou muito novo e não sei como proceder”! Mas o Senhor promete conceder-lhe o que pedir na oração.
Aqui vê-se a grandeza do espírito de Salomão: não pede vida longa nem riquezas, mas um coração sábio capaz de governar o povo com justiça e discernir o bem e o mal. O Senhor louvou-o e atendeu-o: “dou-te um coração sábio e esclarecido como nunca houve antes de ti nem haverá depois de ti”.
O exemplo de Salomão é válido para todos: pais, educadores, profissionais, sacerdotes, governantes… Mas o que significa “coração sábio”? Significa uma consciência que sabe ouvir a voz de Deus, a voz da verdade e do bem. Com maior razão, os que assumem um ministério ao serviço do povo de Deus devem procurar estar sempre em sintonia com Deus, à sua escuta, para orientar o povo pelos caminhos do Senhor, do amor, da justiça e da paz.
E como estar ou pôr o nosso coração em sintonia com Deus? Precisamente através da escuta da sua Palavra. O Salmo de hoje (118) glosa bem este aspeto: “a manifestação das vossas palavras iluminam e dão inteligência(sabedoria) aos simples”. Vede como isto é tão atual, neste tempo confuso que vivemos, para exercer a dignidade da pessoa humana e buscar o bem comum!
Os sinais da instituição do leitor e da ordenação do diácono põem em evidência este dom e missão: “Recebe o livro da Sagrada Escritura e anuncia fielmente a Palavra de Deus para que ela seja cada vez mais viva no coração dos homens”; “Recebe o Evangelho de Cristo que tens missão de proclamar. Crê o que lês, ensina o que crês e vive o que ensinas”!
Caros amigos, como vedes, o primeiro alimento da vossa sabedoria deverá ser a escuta de Deus e da sua Revelação. Sede enamorados da Palavra. Alimentai-vos dela sem cessar. Perscrutai-a, com sede e amor, em todas as suas profundidades. Deixai-vos iluminar por Deus para que o vosso caminho e as vossas opções sejam conformes à sua santa vontade.
Mensagem de realismo e de esperança
Por fim, a segunda leitura é uma mensagem de realismo e de esperança: “Nós sabemos que Deus concorre em tudo para o bem daqueles que o amam, dos que são chamados, segundo o seu desígnio”.
Deus não nos ilude nem desilude. A missão confiada conhecerá fadigas, dificuldades, tribulações, a cruz de cada dia. É o realismo. Mas ao mesmo tempo, o Deus da vida e do Amor comunica encorajamento. Garante que estará sempre a nosso lado e nos nossos corações para agir através de nós e da nossa fraqueza. As provações servirão para nos purificar, para amadurecer na fé e em humanidade, para nos tornar mais humildes e disponíveis e servir melhor a Deus e o povo fiel. Coragem! Sede fortes a exemplo de S. Paulo: “em tudo somos atribulados, mas não esmagados; andamos perplexos, mas não desesperados; perseguidos, mas não abandonados; abatidos, mas não aniquilados”(2 Cor 4, 8).
A Virgem Santa, Sede da Sabedoria e Causa da nossa alegria, vos ajude a formar um coração dócil e sábio como o seu Imaculado Coração, para testemunhardes, com as palavras e os gestos diários, a alegria de terdes encontrado o incomparável tesouro que é Jesus Cristo, ontem, hoje e por toda a eternidade!
† Cardeal António Marto, Bispo de Leiria-Fátima
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