Estamos no dia em que se completam 378 anos sobre a proclamação de Maria, com o título de Imaculada Conceição, como Rainha de Portugal, a coincidir com uma solenidade que, por determinação do actual ordenamento litúrgico, só poderemos celebrar daqui a duas semanas.
Acontece, porém, que acordei a pensar na Anunciação do Senhor; por isso começo estas reflexões matinais invocando a Sua e nossa Mãe, inspirado num texto pouco conhecido de Santo Agostinho; além do mais, porque nele, o santo bispo de Hipona, como que rasga alguns dos véus mais espessos, por detrás dos quis se esconde muitas vezes o sentido mais profundo dos textos sagrados.
Não foi o que rescreveu Agostinho, mas o que as suas palavras me inspiram:
Mãe Santíssima, “Virgem ao conceber, Virgem ao dar à luz, Virgem até à more, pede por nós ao Senhor!”
Por teus filhos, que somos todos, gerados com tanta dor na Cruz e sempre a deixar que nos manche aquele odor do pecado de que foste preservada; mistério que esteve presente, quando, completam-se hoje 378 anos, um rei de Portugal te fez nossa rainha.
Rainha de um país que, perdida a memória dos seus valores, se deixa narcotizar por todo o tipo de ideologias, sem altura nem profundidade.
Diz assim Santo Agostinho, num latim cuja beleza se perde no meu esboço de tradução. “Nascido de uma mulher que, embora sem contacto com varão, concebeu e permaneceu para sempre intacta, concebendo virgem, dando à luz virgem e morrendo virgem, apesar de desposada com um trabalhador, (Jesus Cristo) extinguiu toda a podridão da natureza” (Cf. De cat. rudibus 22, 40).
Sem forçar, nem de qualquer modo manipular os textos, temos aqui uma das afirmações mais rigorosas e acutilantes de São Paulo: o Filho de fez-Se carne (natureza humana criada), para, com total respeito pela Criação – exceptuando o que seria contrário à pessoa divina – libertar a mesma Criação de quanto nega a sua dignidade.
Trata.se, porém de um processo que teve o seu preço, pago pelo Filho, ms que não premeia senão os que se deixam envolver nele: porque entretanto os três inimigos – mundo, demónio e carne, como lhes chama João – não deixam de tentar vias alternativas, com todo o tipo de etiquetas falsas, incluindo a da manipulação da própria palavra de Deus.
Eu diria que este é o grande tema da catequese preconizada pelos textos da liturgia deste segundo dia da Semana Santa:
Começando pelo profeta que fala de um servo de YHWH, afinal não tão misterioso como habitualmente se diz: porque, como muito bem viu São Paulo e todos os judeus que descobriram em Cristo a consumação do seu destino de escolhidos por Deus, o servo de YHWH será precisamente o seu povo, tantas vezes incompreendido, perseguido, ferido e esmagado, pelos próprios da sua raça.
E temos depois o quarto Evangelho, João que, assim como iniciara, sob as luzes do Espírito Santo, a sua meditação de crente apaixonado, com a Semana Inaugural – entre o baptismo de Jesus e o casamento de Caná, inicia agora a Semana da Consumação definitiva, situada entre a unção de Betânia e a unção do Sepulcro.
Protagonista central – eu diria único, porque no mistério só cabe quem, como Simão Pedro, se dispõe a ser lavado pelo Mestre, identificando-se assim com Ele -, o protagonista central, apresentano-lo assim João, no início de um relato que ocupa mais de um terço do seu evangelho:
“Antes da festa da Páscoa, Jesus, sabendo que tinha chegado a sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele, que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até ao último extremo. (…)
Enquanto celebravam a ceia, Jesus, sabendo perfeitamente que o Pai tudo lhe pusera nas mãos, e que saíra de Deus e para Deus voltava, levantou-se da mesa, tirou o manto, tomou uma toalha e atou-a à cintura. Depois deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha que atara à cintura” (Jo 13, 1-5).
Certamente ninguém me levará a mal que, apesar da felicidade que sinto, ao contemplar um Deus que me ama deste modo, parafraseando aquele homem de Deus, perante os sinais de um dos maiores horrores da nossa história contemporânea, diga, com o coração nas mãos:
– Senhor, como é possível que, hoje mesmo, quando milhões de crentes celebram o mistério desta Tua entrega por nós, esses mesmos, tantas vezes manipulando sacrilegamente a Tua palavra, se armem até aos dentes, se massacrem uns aos outros e encham de sangue os caminhos que nos mandaste percorrer, sem sandálias nem alforge, confiados apenas no Teu Amor?!
De Betânia até ao Sepulcro, passando pelo Cenáculo, não há sombra de sugestão para que se acumulem bombas, aviões ou drones; há sim, o lavar os pés uns aos outros com um amor sem preço, e com lágrimas, muitas lágrimas de dor.
Outra coisa não nos recomenda o Mestre, de joelhos, a nossos pés.