Crianças e jovens sofrem com cultura de sucesso tóxica

O sentimento de não poder falhar transforma-se num peso que nem todas as crianças e jovens conseguem suportar.

Como é habitual no início do mês de Setembro, filhos e pais preparam o regresso às aulas, às actividades extracurriculares, aos horários complexos e preenchidos, à azáfama dos dias e, para uns e para outros, a uma ansiedade sentida todos os anos e que está a aumentar progressivamente. As exigências dos pais e da sociedade em geral para que sejam os melhores em tudo estão a contribuir para aumentar as fragilidades da saúde mental em crianças e jovens. Na semana em que se dá o tiro de partida para um novo ano lectivo, é altura de se reflectir sobre este fenómeno e fazer alguma coisa para o contrariar

POR HELENA OLIVEIRA

Às crianças e jovens exige-se cada vez mais que sejam os melhores, que tenham as melhores notas, que sejam exímios no futebol, na música ou no ténis, tudo isto preenchendo quase por completo os seus dias e deixando pouco tempo para as brincadeiras, para momentos de qualidade em família e, igualmente tão ou mais importante, para estarem consigo mesmos, para questionarem o mundo e o que se passa à sua volta, com a particularidade de, nos poucos momentos de lazer, estes serem dedicados aos Instagrams e TikToks desta (nova) vida.

E um dos fenómenos que mais está a contribuir para o aumento das fragilidades da saúde mental em crianças e jovens assenta no aumento contínuo da competitividade e na pressão crescente que sentem, não só exigida pelos pais, mas por toda a sociedade, para serem os mais inteligentes, os mais bonitos e os que melhor se destacam entre os demais, mensagem esta que têm vindo a interiorizar e que os coloca em risco.

Sobre este e outros temas conexos, foi lançado há pouco mais de duas semanas, sendo já um bestseller, o livro Never Enough: When Achievement Cultures Becomes Toxic and What We Can Do About It, da jornalista e mãe de três filhos Jennifer Breheny Wallace, que garante que são muitos os jovens que estão num ponto de ruptura e que o actual ritmo desta competição – especialmente nas comunidades mais abastadas – é simplesmente insustentável.

Para além da sua própria experiência, Wallace baseou-se nos mais recentes dados sobre saúde mental, num inquérito a 6 mil pais e em entrevistas com pais, psicólogos, sociólogos, historiadores, economistas e estudantes para fundamentar a sua escrita. O livro inclui muitas vinhetas partilhadas pelos pais que ilustram vividamente os problemas que os jovens enfrentam actualmente, acompanhadas pelo papel que as escolas e a sociedade no geral desempenham na criação, promoção e manutenção de uma cultura de sucesso tóxica.

Como afirma a autora, há décadas que os investigadores estudam a forma como as experiências adversas na infância, como viver na pobreza, aumentam os riscos para a saúde e o bem-estar de uma criança. Mas há também que estar atento ao facto de nos últimos anos ter surgido um novo grupo “em risco” no outro extremo do espectro económico.

Dois relatórios divulgados nos Estados Unidos, um da National Academies of Science  e outro da Robert Wood Johnson Foundation, concluíram que os alunos que frequentam escolas públicas e privadas competitivas – aquelas que demonstram resultados mais altos nos testes e uma oferta extracurricular e académica rica – apresentam taxas mais elevadas de problemas comportamentais e de saúde mental. Estes alunos são duas a seis vezes mais propensos a sofrer de níveis clínicos de ansiedade e depressão e mais probabilidades de consumir substâncias ilícitas do que o adolescente americano médio.

Wallace escreve ainda que “os nossos filhos estão a absorver a ideia de que o seu valor depende do seu desempenho – da sua média escolar, do número de seguidores nas redes sociais, dos nomes sonantes dos colégios e universidades que frequentam, e não daquilo que são na sua essência. Sentem que nas suas vidas só são importantes para os adultos, para os seus pares e para a comunidade em geral se forem bem-sucedidos”.

E a verdade é que a pressão excessiva para ter sucesso “não é isenta de custos”. É um dos muitos factores subjacentes ao grave aumento da tristeza infantil e juvenil, da ansiedade, da baixa auto-estima, da falta de esperança e até de comportamentos suicidas. Como escreve Jennifer Wallace “as últimas décadas deram origem a uma infância’ profissionalizada’, em que, aparentemente, cada minuto da vida de uma criança/jovem é gerido para maximizar o seu potencial. As actividades académicas, atléticas e extracurriculares tornaram-se cada vez mais competitivas, orientadas por adultos exigentes e tornando-se crescentemente danosas. Estas crianças estão a percorrer um percurso (pré)marcado para elas, sem descanso suficiente ou uma oportunidade para decidir se é mesmo esta a corrida que querem correr.”

Enquanto muitos jovens prosperam a nível académico, atlético e social, muitos outros sofrem de emoções e comportamentos relacionados com traumas devido às elevadas expectativas dos pais, professores, treinadores, da sociedade e deles próprios. O sentimento de não poder falhar transforma-se num peso que nem todos conseguem suportar. Como já enunciado, Wallace concentra-se em “escolas de alto rendimento, que são, de um modo geral, escolas públicas ou privadas competitivas com resultados elevados em testes padronizados” e é aqui que os investigadores encontraram “níveis elevados de problemas de adaptação, provavelmente associados a pressões omnipresentes de longa data no sentido de se destacarem em termos académicos e extracurriculares”.

Quando falamos de pressão, ansiedade, depressão e solidão nos nossos filhos, o que estamos realmente a falar é de uma necessidade não satisfeita de nos sentirmos valorizados incondicionalmente por aquilo que somos no nosso íntimo, longe dos troféus, dos ‘gostos’ e das cartas de aceitação nas escolas/universidades, diz também a jornalista. Infelizmente, hoje em dia, há demasiadas crianças que sentem que o seu valor, a sua importância, depende do seu desempenho, ou seja, só são importantes quando têm boas notas, quando fazem parte da equipa principal de determinado desporto e quando têm muitos “gostos” nas suas contas das redes sociais.

Como é exposto no livro Never Enough, o remédio de Wallace para a cultura tóxica do sucesso não é tanto que a sociedade mude a intensidade das elevadas expectativas, mas sim que os pais ajudem os filhos a negociar melhor as suas escolhas, de modo a que consigam encontrar um equilíbrio mais saudável nas suas vidas. Para além disso, os adultos têm de examinar as mensagens que transmitem às crianças e jovens no que respeita ao seu valor, para que estas percebam que são importantes. Ou seja, fazê-los acreditar que importam como indivíduos, como membros dignos da família, da escola, do desporto – e que importam como indivíduos mais do que as suas vitórias, as suas notas num teste ou a sua popularidade entre os colegas e amigos.

Como afirmou em entrevista, “de acordo com os dados recolhidos numa amostra representativa de estudantes do ensino secundário e universitário, os jovens estão a afastar-se de valores mais sociais, como a preocupação com as comunidades em que estão inseridos, e a aproximar-se de valores mais pessoais, como a procura de dinheiro, fama e imagem.” Wallace propõe ajudar os estudantes a empenharem-se mais em projectos de acção em que cada criança ou jovem contribua activamente para a melhoria da comunidade. As crianças/jovens de hoje precisam de ter um objectivo nas suas vidas para além das suas conquistas e precisam de sentir que são importantes para os outros em todos os aspectos, e não apenas por terem marcado o golo da vitória numa competição escolar.

E quanto aos pais?

Como explica a autora, os pais de hoje estão a enfrentar uma dura realidade. Actualmente – e como sempre aconteceu – os pais esforçam-se por garantir que a vida futura dos seus filhos seja melhor do que a da sua geração, criando aquilo a que os sociólogos chamam “redes de segurança individualizadas”. É essa a raiz da parentalidade intensiva – esta ideia de que precisamos de proteger os nossos filhos de um futuro incerto. Mas esta rede de segurança bem-intencionada está a prejudicar demasiadas crianças que tenta proteger e a contribuir directamente para a ansiedade e a depressão a que assistimos nos jovens. Todavia, e como defende Wallace, não se trata de culpar os pais, mas sim ajudá-los a contextualizar os seus medos e ansiedades para que se possam sentir menos sozinhos. “O estilo parental intensivo de hoje em dia não é uma escolha pessoal que as famílias estão a fazer sozinhas nas suas salas de estar. Os pais estão a responder à extrema desigualdade da nossa sociedade, ao esmagamento da classe média, à globalização e à hipercompetição”, acrescenta ainda, numa altura em que a certeza ou pelo menos a esperança que existia de que a geração dos seus filhos teria melhores condições de vida deixou de existir. Na verdade, esta ansiedade também generalizada nos pais e que inclui igualmente as exigências para com os filhos, está directamente relacionada com um futuro hipercompetitivo de desigualdade acentuada e com menos redes de segurança social garantidas.

O Movimento “mattering”

Presente no livro, mas também disponível no website de Jennifer Breheny Wallace, a resposta para este fenómeno pode estar no mattering [a ideia de que nos sentimos importantes para os outros ou o sentimento de autovalorização).

Como explica a autora, a ideia de mattering foi utilizada pela primeira vez na década de 1980 pelo psicólogo social Morris Rosenberg, que conceptualizou a auto-estima. Rosenberg descobriu que quando os adolescentes sabem que são amados e valorizados por aquilo que são na sua essência, desfrutam de uma espécie de escudo protector que os protege do stress e da ansiedade do ambiente em que vivem.

Como afirma a autora de Never Enough, o amor é a necessidade humana profunda de nos sentirmos significativos, vistos e compreendidos pelos que nos rodeiam. Enquanto vivermos, esta necessidade de “ser importante para outrem” nunca desaparece. Os investigadores chamam-lhe uma meta-necessidade, um termo abrangente que engloba sentimentos de pertença, ligação, autodeterminação, justiça, orgulho e mestria. Assim, e quando sentimos que somos valorizados e reconhecidos pela nossa família, amigos e comunidade e quando temos a oportunidade de acrescentar valor a estes três domínios, isso leva-nos a prosperar.

O problema é que hoje em dia estamos perante um défice de “importância/valorização”, com taxas recordistas de solidão, ansiedade e depressão entre os jovens de quase todo o mundo. Esta ausência de um sentimento de importância é um factor preditivo da depressão, de pensamentos suicidas e de outros problemas mentais. Quando não sentimos que somos importantes podemos agir de forma destrutiva, muitas vezes para chamar a atenção daqueles que mais amamos. A falta de importância é um forte indicador de depressão, ansiedade, abuso de substâncias e até de suicídio. A título de exemplo, uma investigação sugere que um terço dos adolescentes nos EUA não acredita que é importante para os outros nas suas comunidades.

E como insiste Wallace, para que crianças e jovens se sintam importantes, precisam de se sentir valorizados e terem a oportunidade de acrescentar valor aos outros de forma significativa. Quanto mais valorizarmos os outros, afirma, mais nos sentimos valorizados, o que dá origem a um ciclo saudável que protege a nossa saúde mental.

Adicionalmente, o que mais surpreendeu a autora ao longo da sua pesquisa no que diz respeito aos pais assenta na ideia de que a intervenção número um para qualquer criança em dificuldades é garantir que o bem-estar e a saúde mental do cuidador principal estão intactos, porque a resiliência de uma criança, afirmam os investigadores, assenta na resiliência dos pais. Como pais, acrescenta ainda, foi-nos vendida – e comprada – a ideia de que vivemos numa cultura hiper-individualista. Wallace cita a investigadora Suniya Luthar, a qual apelidou os pais de “primeiros a responder” às dificuldades dos filhos, os quais têm de prestar particular atenção à sua montanha russa de sentimentos e às pressões sociais e académicas que têm geralmente consequências negativas.

Assim e para a autora, está na hora de encontrar uma definição alternativa para o que denominamos como sucesso, sem que esta se baseie na competitividade e nos altos níveis de rendimento. Contudo, afirma também que o seu livro não é contra o sucesso ou contra a ambição.

E explica o seu  argumento: “O que estou a dizer aos pais é que está na altura de serem ambiciosos “para mais”. Eu quero que os meus filhos tenham sucesso, mas também quero que eles tenham amizades fantásticas. Quero que um dia cresçam e tenham uma relação de sucesso com a sua cara-metade. Quero que se dediquem a passatempos que lhes dêem alegria. Por isso, quero que sejam ambiciosos para mais do que apenas para o sucesso na carreira ou na vida social. Quero convencer os pais de que os seus filhos devem viver uma vida que importa, uma vida saudável, sustentável e alegre que inclua o sucesso, mas que não seja definida apenas pelo sucesso”.

Na verdade, fazer mudanças na sociedade individualista e hipercompetitiva da actualidadeé, de facto, um grande empreendimento. Talvez as propostas de acção reflectidas em Never Enough permitam às famílias dar passos significativos nesse sentido e que este ano escolar não represente uma corrida demasiado cansativa e perigosa para as crianças e jovens.

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