A Comunidade Papa João XXIII é uma instituição que ajuda os pobres. Na verdade, é algo mais complexo: tem casas de família para crianças, casas de oração, centros de dia, de acolhimento e terapêuticos, está na rua à procura de sem-abrigo, acolhe deficientes profundos e toxicodependentes, faz campos de férias para jovens, vai às prisões, recebe refugiados de guerra, promove campanhas de mobilização contra as causas da marginalização, contacta jovens em discotecas ou ciganos em migração, etc. Ou então é mesmo muito simples: “segue Cristo pobre, servo e sofredor”.
Fundada pelo padre Oreste Benzi em finais dos anos 60, em Rimini (Itália), é uma associação privada internacional de fiéis, reconhecida pelo Conselho Pontifício para os Leigos, com decreto de 25 de março de 2004, com personalidade jurídica canónica e estatutos aprovados. Neles se definem como finalidades “ajudar os associados a realizar a sua vocação específica”, “viver e promover a partilha direta com os mais carenciados” e “trabalhar, de maneira não violenta, em conformidade com a Doutrina Social da Igreja, para remover as causas que criam injustiças e marginalização”.
Chegou a Portugal, mais concretamente à diocese de Leiria-Fátima, no ano passado, a pedido do seu responsável geral, Giovanni Paolo Ramonda, com decreto de reconhecimento assinado por D. António Marto em 27 de fevereiro de 2013.
O Bispo diocesano tinha já visitado e abençoado a casa-família e a casa de oração que têm em Fátima, considerando que “as finalidades e atividades apostólicas e caritativas da associação são de interesse pastoral para esta Igreja Particular”. Fomos conhecê-la melhor.
Fundação e vocação
A comunidade foi fundada pelo padre Oreste Benzi em 1958, servindo em particular os jovens da sua diocese, Rimini (Itália), para os quais organiza o “encontro simpático com Cristo”, um acampamento de verão nas montanhas Dolomite. Ajudado por outros sacerdotes e numerosos colaboradores, a iniciativa vai tendo a cada ano mais participantes e, em 1968, acolhe meninos e jovens com deficiência, vindos de famílias regulares e de casas de saúde de longa permanência.
Foi nestes breves, mas fortes momentos de partilha de vida que verificou a intensa alegria, amizade e comunhão gerada entre os jovens, aprofundada depois durante o resto do ano, e percebeu a vocação da comunidade: trabalhar no vasto ambiente da marginalização e da pobreza.
Em 1972, é oficialmente reconhecida pelo Estado italiano como entidade jurídica e começa a trabalhar por todo o país, fundando no ano seguinte a primeira casa-família, em Coriano, província de Rimini, com o objetivo de “dar uma família a quem não a tem”, especialmente com os “últimos”, isto é, os mais pobres, os sem-abrigo, os drogados, deficientes e abandonados. Ali, numa família “normal” de pais e filhos biológicos, são integradas outras crianças com problemas de saúde ou dependências.
Em 1976, começa a empenhar-se seriamente na sensibilização da opinião pública e das instituições oficiais, com ações não violentas de luta pela justiça social e pela erradicação das causas da marginalização. Nessa linha, edita a partir do ano seguinte a revista “Sempre” e, em 1979, abre a primeira casa de acolhimento de emergência para crianças, sempre com o estilo da casa-família, onde se procura responder de imediato às necessidades das crianças abandonadas ou provenientes de famílias desfeitas (em 1984 serão abertos espaços equivalentes para adultos sem-abrigo). Inicia-se também as cooperativas sociais, dando trabalho ou formação a pessoas com deficiências físicas e psíquicas.
Ação em diversas frentes
O projeto rapidamente se estende por toda a Itália e, no início dos anos 80, chega também a África, a pedido do bispo de Ndola (Zâmbia), para a abertura da primeira comunidade terapêutica para toxicodependentes, comprovando-se a universalidade da sua ação.
Em finais dos anos 80, a comunidade “ganha asas”. Alguns membros começam a frequentar as cadeias para ajudar a reintegração dos presos e outros saem à rua à procura dos pobres que não sabem ou têm vergonha de pedir ajuda. Nasce assim a primeira “Cabana de Belém”, onde acolhem os mendigos encontrados nas estações ferroviárias ou lugares do género. Outros sentem o chamamento à oração e contemplação e é fundada a primeira Casa de Oração. Outros vão ao encontro dos jovens em lugares de divertimento noturno, propondo-lhes um sentido para a vida. Outros vão procurar os ciganos necessitados, outros as mulheres que se prostituem na rua, outros vão para zonas de conflito em missão de paz e voluntariado (operação Pomba Branca), outros acompanham mulheres que se debatem com a opção do aborto, outros fazem esclarecimento aos enredados em teias de ocultismo e seitas satânicas. Em suma, onde há pobres, dependentes, abandonados, seja de que género for, a Comunidade Papa João XXIII procura continuamente novas formas de estar presente e libertar as pessoas para Cristo, trabalhando em parceria com a segurança social, as polícias, as instituições europeias e outras estruturas estatais.
Embora maioritariamente em Itália, está hoje presente em numerosos países dos cinco continentes: Albânia, Austrália, Bangladesh, Bolívia, Brasil, Chile, China, Colômbia, Croácia, Geórgia, França, Quénia, Kosovo, Índia, Israel/Palestina, Moldávia, Holanda, República de São Marinho, Roménia, Rússia, Espanha, Sri Lanka, Tanzânia, Venezuela, Zâmbia e, claro, Portugal. E está em processo de entrada noutros, como Argentina, República de Chad, Congo, Haiti, Ruanda, Ucrânia e Uganda.
Números
São aproximadamente 1850 as pessoas, de diversas idades e estados de vida – leigos, consagrados, padres –, que compõem a comunidade, com o compromisso de “seguir Cristo pobre, servo e sofredor”, segundo as linhas de vida espiritual contidas na sua Carta de Fundação.
Por todo o mundo, têm já mais de 260 casas-família, 63 centros de dia, 32 famílias abertas, 27 centros de acolhimento de emergência, 24 casas de acolhimento temporário, 18 casas de fraternidade, 12 casas de oração e 6 comunidades terapêuticas.
São mais de 2.000 os “acolhidos”, 1400 em Itália e 700 no resto do mundo, a maioria de sexo masculino e com maior incidência etária nos adultos. Cerca de 400 são deficientes, outros tantos vindos de famílias desfeitas, e outros refugiados, imigrantes ou marginalizados diversos. Só metade são remetidos pelas instituições sociais, sendo os restantes acolhidos sem qualquer comparticipação do Estado. Valem as mais de 30 mil pessoas que oferecem anualmente donativos para esta ação e para o vasto leque de assistência diária nos centros de dias e outros abrigos temporários, onde alimentam mais de 40 mil pessoas por dia.
Entrevista à irmã Leonarda Tobia, da Comunidade Papa João XXIII em Fátima
“Oferecer a cada abandonado a dignidade de ter família”
A irmã Leonarda Tobia foi enviada para instalar a Comunidade Papa João XXIII em Portugal, depois de uma missão de oito anos na Rússia. Para sabermos como decorreu esse processo e para uma melhor compreensão do carisma e ação desta associação, o jornal PRESENTE esteve à conversa com ela.
Depois de uma longa história que remonta aos anos 60, porquê só agora a vinda da Comunidade para Portugal?
A comunidade não decide para onde vai, mas apenas responde ao convite do bispo de deterninada diocese. Os casos de Lurdes e de Fátima são duas excepções. O nosso fundador tinha uma grande devoção a Nossa Senhora e planeou, nos últimos anos de vida, fazer duas peregrinações de toda a comunidades a estes santuários. Não chegou a concretizar a de Fátima, pois faleceu um ano antes, mas a comunidade realizou a sua vontade, no dia 8 de setembro de 2008. Nessa altura, pensámos em dar-lhe esse presente póstumo: abrir uma casa em Fátima, que fosse um pulmão de oração para toda a comunidade.
O processo foi fácil?
Bastante fácil, mas demorou algum tempo. Vim cá pela primeira vez com o nosso responsável regional e pedimos apoio à Casa de Maria, com quem já tínhamos alguma relação. Puseram-nos em contacto com os Silenciosos Operários da Cruz, que nos cederam uma casa que tinham desocupada, onde me instalei em setembro de 2011, com um padre que entretanto já saiu. É aí a nossa casa de oração, que está aberta a todos os que queiram um espaço para rezar. No ano seguinte, abrimos a primeira casa-família, com um casal italiano com duas filhas biológicas e dois deficientes acolhidos, um deles com deficiência profunda. Ontem [dia 2 de julho] chegou a Brunella, que veio viver comigo para um ano de aprofundamento vocacional.
Já se tinham cruzado com portugueses no vosso trabalho?
Já passaram portugueses, com certeza, pelas muitas instituições ou ações de rua que desenvolvemos, mas não temos ainda hoje membros da comunidade nem acolhidos de nacionalidade portuguesa.
E há alguma estrutura de ligação a outras casas, ou funcionam como comunidade independente em cada país?
Funcionamos por regiões, que estão depois ligadas à sede geral, em Itália. A nossa região é constituída por Portugal, Espanha e França, cujo responsável é Palmino Paulucci, pai de seis filhos biológicos e mais três acolhidos, residente em Lourdes. O responsável geral é Giovanni Paolo Ramonda.
Em cada região, temos um encontro mensal para formação e organização administrativa do nosso trabalho. Além disso, temos um encontro semanal para partilha de experiências de vida, aconselhamento espiritual, vivência da fraternidade. Este encontro, por cuja realização eu sou a responsável, realiza-se muitas vezes por vídeo-conferência pela internet.
Para além dessa tarefa, tem alguma outra específica em Portugal?
Sou responsável pela casa de oração onde eu vivo e pela administração da nossa comunidade aqui em Portugal.
No meu trabalho local, este primeiro ano foi de contacto com a realidade portuguesa e análise da nossa possibilidade de trabalho concreto. Dedico também grande parte do meu tempo à oração. Isto para além do emprego que tenho, tal como a mãe da casa-família de Fátima, pois temos de garantir a nossa autossustentação. Arranjei trabalho no Seminário da Consolata, que atualmente é só a meio tempo para poder dedicar-me mais à comunidade.
No meio de tanta diversidade de ação, qual é o carisma que consideram central na vossa comunidade?
Os membros podem ter diversos tipos de vocação. Temos uns 50 consagrados, uns 40 padres, mas são quase 2.000 leigos, solteiros ou casados, que vivem nos diversos contextos da comunidade (casa-família, casa de oração, casa de fraternidade, comunidade terapêutica, serviços de emergência para crianças ou adultos…), ou nas suas famílias de origem. Completamo-nos mutuamente nesta diversidade.
Mas temos um carisma comum que se resume nos nossos estatutos em “seguir Jesus pobre e servo”. Para isso, assumimos um compromisso em cinco pontos: compartilhar a vida dos “últimos”, dos mais pobres e abandonados; viver como eles uma vida de pobre; ter uma vida de oração e contemplação; deixar-se conduzir pela obediência, a Deus e aos responsáveis da comunidade; e viver a fraternidade, que é uma das condições indispensáveis para ser membro desta comunidade.
E quem quiser seguir esse caminho, como se processa a sua integração?
O primeiro passo é manifestar essa vontade e escrever ao Conselho de Responsáveis da comunidade uma carta com o pedido de admissão. Caso seja aceite, fará na assembleia geral anual a promessa de fazer, no mínimo, um ano de preparação e verificação da sua vocação, com formação específica feita numa das realidades da comunidade, decidida pelo Conselho de Responsáveis. Após esse período, caso se comprove a sua vocação e a vivência do carisma e dos pilares que referi, fará o seu compromisso como membro.
E quanto aos que são acolhidos, fazem algum tipo de seleção?
Na Itália, os serviços sociais já nos conhecem e encaminham as pessoas. Mas não fazemos qualquer distinção de pessoas, acolhemos todos os que precisam. Se alguém nos faz esse pedido, analisamos a situação na reunião da região e verificamos se temos possibilidade de o aceitar numa das nossas casas, seja em Portugal, seja em qualquer outra parte do mundo.
Também estamos abertos a pedidos de acolhimento de pessoas com problemas de drogas ou álcool. Dada a minha experiência na Rússia com estas situações, por exemplo, virá na próxima semana para a minha casa uma rapariga francesa que tem problemas com álcool, para uma avaliação da possível necessidade de um programa terapêutico mais específico.
Mas muitos necessitados não procuram ajuda, não vêm sozinhos, somos nós que vamos ao seu encontro nas ruas e nos mais diversos locais onde se encontram. Vamos à rua dar comida a pessoas sem abrigo, oferecemos-lhes pousada, banho e, sobretudo, a nossa amizade.
Em Portugal, mais concretamente em Fátima, fazem também esse trabalho?
Como disse, aqui estamos mais dedicados à oração e temos uma casa-família constituída. Mas a realidade portuguesa está muito institucionalizada, tem centros de dia, lares, casas de acolhimento, centros de tratamento. É um território difícil para o nosso modo de agir, que é tratar cada pessoa como única e proporcionar-lhe uma vida em ambiente de família, não em grandes centros comunitários. Em Itália fecharam a maioria desses institutos e trabalha-se muito mais na base do acolhimento em famílias.
O ano passado andei na rua um dia por semana, a contactar e ajudar pessoas sem-abrigo, e estou a pensar fazer algum trabalho em parceria com o Centro de Acolhimento de Leiria. Mas somos poucos aqui, não temos grande capacidade de trabalho social. A maioria das pessoas que nos procuram são as que vivem sozinhas e precisam, sobretudo, de ser ouvidas, de uma palavra amiga, de um pouco de companhia.
Digamos que estamos ainda a tentar perceber quais as principais necessidades e como podemos adaptar a elas a nossa capacidade de resposta.
A quem precisar de vós e aos diocesanos de Leiria-Fátima, em geral, uma mensagem…
A nossa principal luta é acabar com as injustiças sociais e outras causas da pobreza, do abandono e da marginalização das pessoas. Nisso, todos podem ajudar, porque essa é, no fundo, uma vocação comum a todo o cristão.
Por outro lado, o nosso ideal é proporcionar a cada criança, adolescente ou jovem uma família, não uma casa de acolhimento. Então, cada família da diocese deve perguntar-se se não pode acolher outros em necessidade. Esse é um percurso que implica a sensibilização e a formação, um “regenerar no amor”, como dizia o nosso fundador. Propomos a todos essa vocação de oferecer ao que foi abandonado pela sociedade a dignidade de ter família, que é um direito humano fundamental.
A “noviça” Brunella
Não é bem um noviciado, mas algo parecido, este período de amadurecimento e verificação vocacional. Brunella chegou no dia 2 deste mês e no dia seguinte acompanhou a irmã Leonarda na nossa entrevista. E contou-nos um pouco da sua história.
No ano passado, a sua mãe teve um acidente e foi socorrida num hospital longe de casa. Para poder estar perto dela e acompanhá-la durante a recuperação, Brunella precisava de encontrar uma casa onde ficar e pediu ajuda à Comunidade Papa João XXIII, que já conhecia.
Solução encontrada numa casa-família, ela ganha uma amizade especial com a comunidade e… o seu coração impele-a a pedir o ingresso, após três meses de contacto com a realidade das casas-família. O seu pedido foi analisado e aceite na última assembleia geral e foi enviada para a casa de oração de Fátima para um ano de contacto com a comunidade. Ali será acompanhada vocacionalmente pelo responsável e os irmãos da região, nas reuniões semanais, e, de modo mais próximo, pela irmã Leonarda, com quem irá viver.
Para já, tem um desejo: “que Portugal e Nossa Senhora de Fátima sejam uma ajuda na descoberta do meu caminho de vida e de felicidade”.