Foi a primeira imagem que me veio. Poderia ter escolhido outra, até emprestada pela Sagrada Escritura; mas esta foi, de afcto, a primeira que me veio:
Naquele tempo, as aldeias regurgitavam de vida, que se manifestava também nas soluções encontradas para suprir a falta de recursos técnicos, na luta pela sobrevivência; luta que criava também condições para o desenvolvimento da capacidade criativa das pessoas, que, tirando raras excepções, não se abandonavam a um conformismo esterilizante.
Assim, por exemplo, na casa onde nasci e vivi até bem entrado na adolescência, conseguíamos que uma caixa de fósforos durasse largos meses, bem guardada em sítio seco, fora do alcance das crianças, cujo fascínio pelo lume vivo era tão forte como hoje e talvez mais perigoso, dada a abundância de matérias consumíveis, que ameaçavam sobretudo as habitações, já que as matas, ao contrário do que acontece hoje, se limpavam cuidadosamente todos os Invernos.
E que fazíamos nós para poupar os fósforos e não precisarmos nunca de pedir aos vizinhos, como também se fazia em larga escala, o lume necessário, quando se tratava de acender a lareira?
Sim. Era isso! Toda a gente sabe: juntávamos as brasas, algum tição que não tivesse ardido por completo, cobríamos tudo com cinza; e assim se guardava o calor no borralho e o lume necessário para reacender a fogueira, de manhã, ou quando fosse preciso para qualquer eventualidade.
Mal comparado, será assim que todo o discípulo de Cristo que queira ser fiel ao seu Baptismo terá de atravessar a vida, discretamente, se for caso disso, mas sempre aquecendo os corações e pronto a fazer-se fogueira, quando as circunstâncias o exigirem.
Mal comparado, já disse; mas foi a imagem que me veio à mente, ao ler o evangelho da missa desta quarta-feira da Páscoa. Sobretudo naquela parte em que os dois companheiros, que regressavam desanimados de Jerusalém, comentavam um com o outro a experiência de uma viagem com Jesus, sem se darem conta de que era Ele:
“Disseram então um para o outro: «Não ardia cá dentro o nosso coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?» Partiram imediatamente de regresso a Jerusalém e encontraram reunidos os Onze e os que estavam com eles, que diziam: «Na verdade, o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão». E eles contaram o que tinha acontecido no caminho e como O tinham reconhecido ao partir o pão” (Lc 24, 31-34).
Texto com um conteúdo narrativo que denuncia claramente o seu autor humano, até na figuração dos caminhos da misericórdia divina, precisa de ser meditado devagar, sem pressões do tipo das que frequentemente fazem com que os comentadores das nossas celebrações se fiquem pela repetição de lugares-comuns, talvez demasiado centrados num único aspecto do mistério de Ressurreição.
A misericórdia divina e a ressurreição de Cristo!
Que encanto e exigente apelo, aquele caminhante que, sem forçar nada nem ninguém, se junta aos dois desencantados, que não conseguem dissimular a tristeza do seu desencanto, nem sequer para viajar com um pouco mis de serenidade!
E cria espaço para que eles desabafem com um terceiro, que ignora, ou finge ignorar a raiz daquela tristeza; depois oferece-lhes perspectivas mais animadores, pistas de ultrapassagem que, sem diminuir a gravidade dos factos, os projectam numa dimensão superior.
O partir do pão, segundo o evangelista, constitui o ponto culminante de uma caminhada paralela precisamente da que têm de corrigir aí mesmo, voltando, como o filho pródigo, ao aprisco, onde a amizade e a comunhão de experiências sublimes, constitui uma festa mais reconfortante e duradoira do que a que realiza pai da parábola, no regresso do filho perdido.
Este será talvez o erro mais grave que cometemos quando reflectimos sobre a nossa condição de discípulos de Jesus Cristo, ou seja, de quem aprende d’Ele e é enviado por Ele: tendemos sistematicamente a inverter a ordem das coisas, sempre esquecidos de que apostolado não é propaganda, nem proselitismo, como o entendiam os Judeus, no tempo de Jesus; proselitismo que a progressiva secularização da vida e dos conceitos fez descer ao nível da publicidade e da luta partidária.
No apostolado não se pode começar pelo visível, o espectáculo, as bandeiras: tem de se começar pelo invisível, o aquecimento dos corações, a braços com a hipotermia provocada por este mundo cada vez mais enregelado.
Como o brasido, coberto de cinza, mas que aquece o borralho e pode a qualquer momento servir para acender o lume, atiçar a fogueira, incendiar a casa e a floreta.
Creio interpretar bem o conteúdo deste texto de um santo dos nossos dias:
«Cada cristão deve tornar Cristo presente entre os homens; deve actuar de tal maneira que os que convivam com ele se apercebam do bom odor de Cristo (2Cor 2, 15); deve actuar de modo que, através das acções do discípulo, se possa descobrir o rosto do Mestre» (S. Josemaria, Cristo que passa, n. 105).