O ambiente descrito no artigo anterior era o que se vivia também em Leiria, nos últimos anos antes da restauração da Diocese, com o descontentamento agravado pelo facto de esta estar extinta. Socorremo-nos do jornal “O Mensageiro”, onde encontramos frequentes referências à vida social e política local da época.
Tal como no resto do País, também aqui houve perseguição a clérigos e leigos, espoliação de bens da Igreja, entre os quais alguns templos e o paço episcopal, transformados em quartéis militares ou ocupados por entidades estatais. Na edição de 25 de novembro de 1914, “O Mensageiro” refere a Igreja “viu desaparecer a brigada, o seminário, os colégios da portela [franciscano] e de Santo Estevam, Sant’Ana”. Na edição de 3 de fevereiro de 1915, refere que “não possuimos absolutamente nada; o pouco que a monarquia constitucional deixou ás mitras, mas que ainda assim era suficiente para a congrua sustentação dum Prelado, foi chamado pela Republica para os cofres do estado como ‘res nullius’, deixando as Igrejas, os Prelados e o clero lutando com as maiores dificuldades para não dizermos com a fome e a miséria”.
Ainda assim, os textos de O Mensageiro dão a entender que o ataque das autoridades locais não terá sido tão violento como noutras regiões do País. “Justiça é dizê-lo, as autoridades civis de Leiria não se teem prestado á perseguição baixa e mesquinha, que se tem dado noutros concelhos e noutros distritos”, escreve-se logo na primeira edição. Há várias referências elogiosas aos administradores, mas também críticas. Por exemplo, a terceira edição do jornal, de 21 de outubro, foi mandada apreender pelo administrador do concelho, que o diretor acusa de “avidez (…) em busca de popularidade” e de “ouvidor de queixas”. Outro exemplo, a 11 de julho de 1917, quando o administrador – ex-padre – proíbe o regresso com vestes sacerdotais dos padres que acompanharam um funeral, supostamente para os ridicularizar, obrigando-os a mudar de roupa em público, já que a capela do cemitério tinha sido transformada em casa de autópsias.
É interessante o relato publicado na quarta edição, a propósito de uma manifestação pública de fé na Vieira de Leiria: “A procissão, que percorreu as principais ruas, oferecia um aspecto imponente de grandesa, não só pela sua extensão, mas sobretudo por ser esta a primeira festividade em que foi permitido sair a procissão depois do novo regímen. […] Convem registar que não houve por parte fosse de quem fosse a menor provocação que porventura podesse ofender directamente os brios dos devotos”. Mas, daí a duas semanas, uma correspondência de Alcobaça informa: “passou-se quasi despercebido nesta vila o dia de finados, porque a ilustre autoridade administrativa desta terra não permite toques de finados em tempo algum. Caprichos bem escusados”. Ainda em carta de Alcobaça, passadas outras duas semanas, noticiava-se que “o povo do lugar de Chãos, freguesia de Aljubarrota, sabendo que a Junta de freguesia tinha vendido umas oliveiras da capela do dito lugar, levantou-se em massa contra isso e foram apanhar toda a azeitona das oliveiras, para concertos [sic] da capela que está em ruínas e que a Junta também queria vender”.
Alcobaça deveria ser uma região mais complicada. Na edição de 16 de dezembro de 1914 surge a notícia de graves incidentes no Mosteiro, aquando da celebração das exéquias por Pio X. O pároco conta que um grupo de homens gritou morte aos padres e vivas à República, apontou armas, tocou sinos a rebate, bateu nas portas, soltou cães, rebentou explosivos e obrigou os muitos fiéis presentes a fugir. O administrador nada fez e conclui o pároco que “não ha uma unica prisão, cobrindo-se todos estes desrespeitos e insultos com a impunidade, esfrangalhando-se desta forma a constituição da republica portuguêsa que diz garantir a liberdade de cultos”.
Na cidade de Leiria, na edição de 30 de dezembro, vários textos referem a prisão, na noite de Natal, de três cidadãos, um deles padre, acusados sem fundamento nem provas de estarem envolvidos na revolta de Mafra. E são frequentes as referências à ação escondida e “cobarde” dos informadores e espiões do regime, da famosa Formiga Branca (corrente da Maçonaria).
Na edição de 26 de julho de 1916, noticia-se uma “igreja assaltada e sacrário profanado” em Regueira de Pontes, referindo-se que “ha muito que no concelho de Leiria se não praticavam roubos como este, o que veio aumentar a sensação produzida”. Um ano depois, em julho de 1917, aparece o relato de outro assalto a uma igreja de Porto de Mós e, a 1 de agosto, à igreja dos Marrazes.
De facto, a 7 de março de 1917, tinha sido publicado que chegara a Leiria um republicano com a missão do “cabal cumprimento da Lei de Separação”. A sua missão seria a venda dos passais das igrejas paroquiais, terrenos e outras parcelas que haviam sido doadas às igrejas e que tinham sido preservadas pelos párocos.
Por esta altura, “O Mensageiro” traz imensos artigos sobre a ação “nefasta” da maçonaria, através do Grémio Gomes Freire, de Leiria, na proibição dos alunos das escolas de participarem em atos religiosos, na promoção da venda de casas paroquiais, na tentativa de vetar a visita pascal do pároco de Leiria, anteriormente autorizada pelo Governo, etc.
E mais não viria porque, nestes anos de 1916 e 1917, o jornal saía muitas vezes com grandes manchas brancas deixadas pelo corte da censura. E seria mesmo suspenso nalgumas semanas.
Luís Miguel Ferraz
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