Embora com uma área considerável, parece meio escondida, na paróquia da Maceira, a quinta onde está a germinar há cerca de uma década a associação “Nascentes de Luz”. A semente foi o “sonho” da irmã Margarida Monteiro, que sofreu na pele o duro processo do “parto”, mas hoje floresce em boas obras e nos sorrisos que dá e recebe.
Bem-vindos
A fachada é de uma casa típica de meados do século passado, na Costa de Baixo, paróquia da Maceira, com restauro recente e assinalada com um símbolo de uma chama viva e o nome “Nascentes de Luz – Associação de apoio à família”. À entrada, dois sorrisos nos acolhem, junto a uma placa de madeira com a expressão “bem-vindos”. O acolhimento, dizem-nos os sorrisos das irmãs Margarida Monteiro e Eduarda Barbosa, “é dedicado a todos os que queiram entrar”. Entramos.
De repente, somos transportados ao típico pátio rural, de terra batida, com diversos anexos em paredes de pedra, frentes abertas, eiras, canteiros e plantas rasteiras a conviver com árvores de grande porte. Mas há também um ambiente de “espaço público”, logo no grande salão da “cozinha do forno”, transformado num misto de churrasqueira e sala de refeições apta a receber grandes grupos, e noutros pequenos cómodos cujas funções e antiga função nos são indicadas por placas de madeira como a da entrada.
Avançando, outro grande salão, onde outrora foi um palheirão e que agora, completamente renovado, é um amplo espaço onde cabe uma centena de pessoas em reuniões, assembleias ou encontros diversos.
A irmã Margarida mostra-nos, então, a casa de habitação que recebeu em herança de seus pais e avós, o primeiro espaço a ser restaurado e onde reside desde 2007. Foi aí que tudo começou e, além da zona de residência que ocupa – com a irmã Eduarda desde 2014 –, há um cantinho para a oração, salas para reuniões, escritório, quartos para visitas e o vasto sótão onde se guardavam as batatas faz as delícias dos mais novos e serve para dar guarida a escuteiros e outros grupos em viagem. “Já vivemos aqui momentos muito ricos de formação, oração e convívio, e acolhemos pessoas que não tinham onde ficar, pelos mais variados motivos”, explicam as irmãs.
À volta da casa, além dos salões restaurados, há diversos outros compartimentos à espera de obras. “Vamos fazendo aos poucos, conforme as ajudas que recebemos e o crescimento natural da associação”. Mostram-nos a antiga “mercearia do avô”, ainda com todos os sinais do abandono do tempo.
Pegada, a “casa da avó” já foi melhorada e serve para acolher o depósito de roupa e outros bens oferecidos para distribuir pelos mais necessitados, serviço “dar e receber” organizado por uma equipa de voluntários. No futuro, será este o “espaço histórico”, onde se reconstituirá o cenário típico da antiga casa da aldeia, com o mobiliário guardado para o efeito.
De novo na rua, debaixo do carvalho maior, um outro cantinho histórico é um dos espaços privilegiados para a brincadeira das crianças, com um grande tonel a servir de casinha, a imitação de um poço com a respetiva picota e a prensa do velho lagar.
Ali ao lado, no “curral das vacas do avô”, uma lona anuncia “vamos transformar este espaço numa linda sala de recolhimento e oração”. A irmã Margarida explica que não quer que seja uma capela, mas “um espaço onde todos se sintam bem para rezar, refletir, entrar em contacto com o Divino”, independentemente até da sua religião. Ainda não sabe bem como será, mas acredita que “um dia destes ganhará forma”. Para tal, contam com a ajuda do arquiteto leiriense José Fava, que apadrinhou esta associação desde o início e ofereceu o projeto de restauração integral da quinta. Entretanto, também o arquiteto Jorge Francisco, da Maceira, se encantou pelo projeto e está a colaborar para a programação dos espaços da quinta.
Espiritualidade e ambiente
Sim, é uma quinta, com eiras, casas de arrumos, e área de cultivo, onde deverá iniciar-se em breve um projeto de permacultura. Porque uma das vertentes da associação é também a da preservação ambiental, promoção da agricultura biológica e da alimentação vegetariana, como reflexo do cuidado do corpo e do espírito em simultâneo. E já há por lá vários canteiros com plantas medicinais, flores comestíveis, ervas e arbustos com funções próprias no equilíbrio do pequeno ecossistema, tendo no centro um jardim em forma de “margarida” – dedicatória do arquiteto à dona do terreno.
Já se vislumbra também um buraco que será “lago de Tiberíades” e ao lado o futuro “monte das Bem-Aventuranças”. Porque se pretende que quem passear por este espaço agrícola não deixe de poder cultivar a espiritualidade. Mas não de forma “obrigatória e intrusiva”. Assim, “quem quiser apenas apreciar o espaço natural, verá uma simples lagoa para depuração das águas domésticas e uma elevação para cortar os ventos de Norte”, sorri a irmã Eduarda.
Já concluído está o “cantinho da Anunciação”, o primeiro espaço temático, construído “com ajuda de várias famílias generosas”. A bênção foi feita em março passado, com a presença do pároco, do presidente da Junta de Freguesia e de duas irmãs a representarem oficialmente, pela primeira vez, a congregação de São José de Cluny.
Terminamos a visita junto à eira “onde o avô apanhava sol”. A irmã Margarida abre os braços e indica o grande janelão que imagina para aquele recanto, “onde os mais idosos possam desfrutar deste solinho”.
As lágrimas do parto
Hoje, a imagem de marca das irmãs é o sorriso, mas nem sempre foi assim. Comecemos pelo princípio.
Margarida Monteiro nasceu nesta casa há cerca de 70 anos. Aos 23 decidiu responder “sim” à vocação de consagração e ingressou na congregação de São José de Cluny, em Braga, seguindo para os Açores quatro anos depois. Desempenhou muitas funções, entre as quais a de formadora, uma base que muito agradece para a missão que hoje desempenha. Embora sendo feliz na sua vocação, uma inquietação não a deixa sentir-se completamente realizada… “sentia necessidade de uma nova forma de vida religiosa que a congregação não preenchia completamente, de encontrar uma novidade profética que pudesse oferecer ao mundo para a libertação das novas escravaturas dos nossos dias”.
Assim, embora mantendo a ligação a Cluny, decidiu abandonar a comunidade, em 2007, para vir ocupar a casa da herança paterna, “em ruínas e sem condições mínimas de habitabilidade”. Conta que “não sabia o que viria fazer aqui, mas vinha à procura de respostas, tinha um sonho que me acompanhara nos últimos anos e confiava na Providência Divina”. Era começar tudo do zero e… sozinha. “Apesar do frio, da falta de recursos além da pequena ajuda da Congregação e da caridade dos vizinhos, era a solidão que mais me custava, pois sempre vivi em família em comunidade”. Por isso chorou, sofreu, “mas nunca duvidei nem senti vontade de ir embora, pois nos momentos mais difíceis surgia sempre uma luz a indicar uma solução”. Contava também com a ajuda da família, que sempre a apoiou, sobretudo a sua irmã Fátima, que também sonhava com uma obra social ali instalada e que considera cofundadora desta associação.
Foi, portanto, uma espécie de “catarse ou limpeza interior”, que lhe permite sorrir hoje com mais gosto. Aos poucos, as ajudas começaram a surgir, a parca herança deu para reconstruir a casa e alguns anexos foram tomando forma. E, em 2014, veio a irmã Eduarda Barbosa. Conheceram-se nos Açores, há quatro décadas, ambas no início de vida religiosa, e cruzaram-se por diversas vezes na missão formadora. Eduarda foi acompanhando o “sonho” de Margarida e a sua decisão. Passou a frequentar esta casa com alguma frequência, até que começou a sentir que era aqui o seu lugar. Decidiu embarcar na aventura e não se arrepende.
Ambas foram, entretanto, estreitando laços com a paróquia e instituições locais, o seu trabalho começou a ser reconhecido e procurado e está hoje com bases sólidas. Além da formação inicial recebida em Cluny, estão ligadas ao Movimento Eclesial Mambré e à sua associação Novahumanitas que oferece um projeto de formação humana com o qual se identificam. Ligam-se ainda à espiritualidade vivida na Fundação Maria Mãe da Esperança, da Diocese de Leiria-Fátima, com a qual realizam atividades em parceria.
Momento celebrativo na Assembleia Geral de março deste ano
Futuro assegurado
A preocupação da irmã Margarida era o que poderia acontecer no futuro ao seu projeto e a esta quinta. A criação da associação Nascentes de Luz foi a resposta encontrada e formalizada em 2010. Tem cerca de 200 associados, além de muitas dezenas de outros amigos e colaboradores, muitos com frequência regular do espaço em encontros de formação, grupos de oração, retiro popular e “lectio divina”, atividades da catequese e de grupos de jovens, etc.
Um dos exemplos é o do agrupamento de escuteiros da Maceira, que já sente aquele espaço como seu. “Ajudaram na limpeza e restauro dos espaços e vêm frequentemente fazer trabalhos de campo e outras atividades”, contam as irmãs. E referem, ainda, o envolvimento da Junta de Freguesia, que tem ajudado com materiais e maquinaria.
Sentem apenas que “às vezes, os de perto da porta é que conhecem menos”. Mas as várias iniciativas vão fazendo uma aproximação, como o Dia Aberto que vão organizar já a 28 de maio deste ano, “para mostrar à população quem somos e o que fazemos”. Só assim poderá cumprir-se plenamente o letreiro da entrada: “bem-vindos!”.
O nome
“Nesta quinta existiam muitas nascentes de água”, conta Margarida. Quando as procurou, tinham secado, embora continuem a existir no subsolo. “Assim é o nosso coração, cujas nascentes podem estar escondidas”. Penso no nome “Nascentes de Vida”, mas já estava registado, pelo que ficou “Nascentes de Luz”. Cruza-se com as expressões bíblicas “Deus é Luz” e “Vós sois a luz do mundo” e adequa-se ao objetivo geral da associação: “Despertar as fontes luminosas que há em cada um, para que jorrem com abundância na vida”.
Alguns números de 2016
- 142 atendimentos (55 individuais, 15 em casal, 10 a jovens, 59 por telefone e email, 3 com apoio da InterMediar).
- 17 permanências de pessoas em tempo de repouso físico e espiritual ou em situações dolorosas, num total de 80 dias de estadia.
- 153 visitas domiciliárias (92 a famílias e 61 a idosos e doentes).
- 102 pessoas recebidas em visita (20 crianças, adolescentes e jovens e 82 adultos).
- 964 de voluntariado prestado em serviços da casa, do jardim e administrativos, além de muitas outras ofertas de serviço não contabilizadas em tempo.
- 70 famílias apoiadas com roupas e bens.
- 10 famílias ajudadas psicologicamente.
- 6 famílias alimentadas periodicamente.
- Mais de 100 caixas de roupas e calçado enviadas para instituições sociais de Fátima, Guiné Bissau, Moçambique, etc., serviço prestado em 156 horas de voluntariado local
- Mais de 500 participantes em atividades realizadas, como grupos de oração, ginástica sénior, cursos de horticultura e alimentação, catequese, festas temáticas e outros encontros.
- 2 irmãs em colaboração ativa com a paróquia (Equipa da Pastoral Familiar, Conselho Pastoral, Liturgia, Catequese…), e com as instituições socias locais e da região.
Grupo de escuteiros da Maceira em limpezas na quinta