A sombra do cajueiro, os contentores e a resiliência da Igreja

Estamos a entrar no mês de abril de 2024. Muitas reflexões vêm à mente. E uma das mais faladas é o 25 de abril de 1974 e o colonialismo, e as guerras do Ultramar. Seria também motivo para refletir nos anticolonialismos e totalitarismos e suas consequências, antes e depois destes 50 anos, alguns pouco tratados, como hoje os de Cabo Delgado. Nem é muito tratada a decadência, falência e morte prematura da primeira República antes de 1926, e o salazarismo, por 1933. Será que tudo se resume a pôr heróis contra anti-heróis e a exaltar uns e a rebaizar outros? Escolhi, porém, o tema da sombra dos cajueiros e dos contentores, pós 25 de abril, em Moçambique, à volta da vida santa do Enfermeiro e Missionário, o Pe. Manuel (Bento) Nogueira, que deu a sua vida à Igreja e aos doentes na diocese de Nampula durante trinta anos (1972 – Lisboa, 26.10.2003) e deixou ali fama de santidade. E o evento atual da abertura do seu processo de beatificação e canonização a realizar no dia 5 de abril deste ano, por decisão do Patriarca de Lisboa. Esta sessão do tribunal canónico será realizada na Igreja da Casa de Saúde do Telhal (Sintra) para onde, há meses, foi exumado o corpo do servo de Deus.

Porquê à sombra dos cajueiros? No meu livro “Missionário a toda a prova em Moçambique”, este Missionário, depois dos seus três períodos de prisão, por mobilizar os cristãos em 1979-1981, explica como evangelizava à sombra de cajueiros. E que mesmo para isso era preciso ter licença e muito mais para construir uma capela. E construiu rês. E tinham que ser chamados lá os da liberdade religiosa, para darem licença. Bendita sombra dos cajueiros, lugar da palavra e do Espírito do Senhor! Além das atividades gratuitas de enfermagem (era enfermeiro, diplomado em Lisboa), na clínica de doentes mentais, num Instituto da Igreja, recebia de vez em quando, um contentor de tudo o que precisava por lá, para prestar ajuda aos necessitados que eram em grande número. Durante aqueles trinta anos, foram dezenas de cargas de ofertas em contentores. Benditos contentores, a Cáritas, as organizações da Igreja e tanta gente bondosa! As forças e resistências da sua saúde nunca o abandonaram até um ano antes da sua passagem (páscoa). A entidade mais resiliente é, sem dúvida a da Igreja. Resiste há mais de dois mil anos! A resiliência da Igreja, a toda a prova, ajudou o Missionário Pe. Manuel Nogueira, também, a toda a prova, naqueles 30 anos. Terá semelhanças com a de Cristo na ressurreição. Nos tempos da prisão passou por quase tudo: humilhações, desprezos e privações de cobertor, colchão, colher para comer, calçado, tempo de ir à sala de banho. Até lhe tiraram o rosário por ser perigoso, diziam, e ele comentou: é perigoso, mas noutro sentido, (pela proteção de N. Senhora). Teve que recorrer aos dedos e à sua memória prodigiosa, para manter a ligação com o Senhor. E serviu-se até do janelo da prisão para, ao longe, avistar uma igreja e manter-se ligado a Jesus. Nunca soube porque fora preso e não saiu da prisão a odiar ninguém; mais sofria por temer que o seu rebanho ficasse privado da sua presença de pastor. Era apoiado pela Igreja viva; sempre acarinhado pelo seu Instituto, a Ordem Hospitaleira de S. João de Deus, pelo seu Bispo D. Manuel Vieira Pinto que o nomeou, sucessivamente, para mais de uma dezena de funções como um dos seus braços direitos pastorais. Foi também acarinhado pelo seu rebanho, meio disperso, mas também resiliente, e pela Amnistia Internacional. A sua resistência e resiliência a toda a prova têm outros nomes: os dons da fé, esperança e Caridade. E o apoio da prática da oração. Era dotado de prudência, justiça, fortaleza e temperança, as virtudes cardiais ou eixos de hábitos bons.

Foi missionário a toda a prova até cerca de um ano antes da chamada em que os sintomas difusos de limitações, (encontrados depois na escrita do seu diário), o obrigaram a procurar cuidados médicos urgentes em Lisboa em maio de 2003. Visitei-o duas vezes na clínica já com diagnóstico de cancro difuso a queixar-se, com humor, que Jesus teve mais sorte que ele: só esteve três horas na cruz; e ele já há mais de três meses. Agora só lhe restava a prova da passagem e ressurreição. As suas outras doenças durante a vida, descritas pela sua competência de Enfermeiro, nunca o impediram de ser missionário, mas nesta fase ia mesmo ser exonerado das funções missionárias africanas, mas não de outra missão que a abertura deste processo de beatificação e canonização fazem antever. Alguns já começaram a pedir a sua intercessão para a sua cura. É de esperar que o processo abra a porta para a missão eclesial de intercessor junto do Pai das misericórdias em favor doutros doentes. Logo a seguir à abertura vão ser recolhidos testemunhos dos que o conheceram pelo tribunal do processo. Porque não um Enfermeiro Missionário a prestar cuidados de junto de Deus e do seu fundador S. João de Deus?

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