Na Casa onde habito, antes das refeições em família, com uma ou outra variante, reza-se assim: “Abençoai, Senhor, o alimento que vamos tomar, a fim de que ele sirva para repararmos as nossas forças e melhor Vos podermos servir a amar”.
É uma fórmula que aprendi há muitos anos, isto é, logo que, por desejo de brevidade e aversão ao latim, se pôs de lado aquele belíssimo salmo, onde se fala da bondade com que Deus provê às necessidades de alimento, sobretudo dos dos pobres.
Também tem o seu encanto esta fórmula de bênção, porque é da chamada “bênção da mesa” que se trata, e tenho para mim que merecia um pouco mais de atenção que aquela que se lhe presta, por várias razões, até pelo momento em que se recita.
E foi quando me fixei com um pouco mais nas palavras, que me veio à mente a existência aqui de uma certa incoerência entre o que diz a Teologia e a Ascese cristãs, sobre a necessidade de santificar cada gesto, em cada minuto, para que toda a nossa vida seja repassada de sobrenatural, segundo as palavras de São Paulo: “quer comais, quer bebais, fazei tudo para glória de Deus” (1 Cor 10, 31).
O que me chamou mais a atenção foi o preconceito que pode ter-se escondido por detrás deste pedido a Deus, que abençoe os nossos alimentos, a fim de que eles sirvam para repararmos as nossas forças e melhor O podermos servir a amar.
Será que um doente, fisicamente diminuído nas suas capacidades, não poderá servir e amar melhor o Senhor, do que qualquer profissional, cheio de saúde, mas distraído com uma infinidade de coisas, alheias ou não à sua actividade, em todo o caso, sempre arrastando-o para fora do seu centro? Com muita actividade ou pouca, o que importa é fazer o que Deus espera de nós, no momento concreto em que nos encontramos: porque, se é verdade que Ele quis precisar de nós, não é menos verdade que servi-l’O com generosidade não tem tanto a ver com o que fazemos, como sobretudo com a abertura do coração aos Seus desígnios.
E quantas vezes os desígnios de Deus, sem deixarem de ser infinitamente amorosos, incluem surpresas que nos põem frequentemente na situação de Jesus, nosso Mestre e Guia, no Jardim das Oliveiras – Pai, se for do Teu agrado, afasta de mim este cálice -, e no alto da Cruz – Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?
Situações transitórias ou permanente, que são uma óptima ocasião para vermos e corrigirmos, se for caso disso, o espírito com que trabalhamos.
Vêm-me estas ideias a propósito do que escreve São Paulo na segunda careta aos Coríntios, da qual se lê, na missa deste XIV domingo, o seguinte trecho:
“Para que a grandeza das revelações não me ensoberbeça, foi-me deixado um espinho na carne, – um anjo de Satanás que me esbofeteia – para que não me orgulhe. Por três vezes roguei ao Senhor que o apartasse de mim. Mas Ele disse-me: «Basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que se manifesta todo o meu poder».
Por isso, de boa vontade me gloriarei das minhas fraquezas, para que habite em mim o poder de Cristo. Alegro-me nas minhas fraquezas, nas afrontas, nas adversidades, nas perseguições e nas angústias sofridas por amor de Cristo, porque, quando sou fraco, então é que sou forte” (12, 7-10).
Na visão de conjunto, tento presente o contexto das palavras de Paulo, não será relevante saber a que é que ele se refere quando diz. “foi-me deixado um espinho na carne, – um anjo de Satanás que me esbofeteia – para que não me orgulhe”. O que importa é que São Paulo, tendo em mente os pregadores que se vangloriavam, talvez do seu passado e do seu conhecimento da Lei – seriam os judaizantes (?) – repara, não naquilo em que também ele poderia gloriar-se, mas naquilo que, tornando-o mais fraco, lhe mostra com mais clareza o que diz, por exemplo, aos Gálatas: “pela Graça de Deus sou o que sou.”
E nas suas fraquezas ele encontra a felicidade, não pelas fraquezas, mas pelas maravilhas que, apesar delas e por elas, Deus realiza.
É por isso que me permito discordar da tradução litúrgica – “de boa vontade me gloriarei das minhas fraquezas” – que poderia significar que o Apóstolo tem vaidade em ser fraco limitado, como acontece com muitos dos nossos contemporâneos, que fazem alarde daquilo que os singulariza, sobretudo pela negativa.
Julgo que a tradução mais correcta, para respeitar o essencial do pensamento paulino, seria: “Por isso, de boa vontade me gloriarei NAS minhas fraquezas, para que habite em mim o poder de Cristo”.