Na noite de 13 de maio de 1917, uma história extraordinária entrou numa casa de Aljustrel e, no dia seguinte, corria pelas ruas desta pequena aldeia rural da freguesia de Fátima: os irmãos Francisco e Jacinta Marto, de 9 e 7 anos de idade, respetivamente, e a sua prima Lúcia de Jesus, de 10 anos, afirmavam ter visto naquele dia, ao meio dia, uma “senhora mais bela do que o sol”, que lhes apareceu vinda do céu e lhes falou de cima de uma azinheira.
A “aparição” pedira que voltassem durante mais cinco meses, no mesmo dia, à mesma hora e no mesmo local, a inóspita e despovoada depressão da Cova da Iria, na serra de Aire, a uns dois quilómetros da sua residência. E assim aconteceu, sempre com um crescente número de pessoas a acompanhar os pequenos videntes, até que serem cerca de 50 mil pessoas a testemunhar os fenómenos solares que ocorreram em outubro e que viriam a ser fundamentais para “certificar” a fé dos que ali acorriam para cumprir uma mensagem de penitência e oração do terço, sobretudo pela causa da paz no mundo.
A Diocese de Leiria estava ainda extinta, sendo este território da Diocese de Lisboa. E é interessante aferir até que ponto estes episódios terão influenciado a decisão da restauração. Apesar de não haver evidências históricas desta relação, tem havido quem a defenda, sobretudo para sustentar uma tese de “fabricação” dos acontecimentos, tendo em vista essa finalidade. O recente livro “Fátima – das visões dos pastorinhos à visão cristã”, de D. Carlos Azevedo, vem esclarecer o assunto, com a divulgação de documentação inédita do Arquivo Secreto do Vaticano. De facto, escreve este autor: “Após envio da recolha de informações e lista de paróquias, com mapa a cores e alguns esclarecimentos suplementares, por telegrama, o Cardeal Pietro Gasparri (1852-1934) informa Aloisi Masella que está decidida a restauração (30-04-1917). Espera-se momento para a tornar pública. Na diversa correspondência do Arquivo da Nunciatura de Lisboa, guardada no Arquivo Vaticano, anterior e posterior às visões, nenhuma faz referência ao facto. […] Consultando todo o processo romano, não há a mais leve referência, ainda que implícita, aos acontecimentos da Cova da Iria”. Mais adiante, depois de descrever todo o processo para a escolha do novo bispo, conclui que “em nenhum momento deste processo os acontecimentos de Fátima são chamados ou citados”. Como relata Barthas no livro “Fátima”, o próprio bispo nomeado, D. José Alves Correia da Silva, “nem sabia ao certo onde ficava Fátima” e confessava-se “incrédulo”, considerando aqueles acontecimentos como “coisas de crianças” e mais uma “preocupação”.
Podemos corroborar este facto com a análise ao jornal “O Mensageiro”. Tendo como causa fundadora e principal luta a restauração da Diocese, seria de esperar que um acontecimento com as características das Aparições fosse aproveitado como argumento para a potenciar, no período até ao anúncio da “vitória”, em fevereiro de 1918. E também depois, até abril de 1920, para insistir na necessidade de nomeação de um bispo. Por outro lado, a “visita do sobrenatural” e o crescente movimento religioso em torno de Fátima poderiam ser usados para destacar a “eleição” desta parcela da Igreja em Português e a justiça da restauração do seu bispado. Mas não é isso que acontece: durante toda a década de 1917-1927, não se encontra um único cruzamento entre estas duas temáticas. Até porque, por motivos diversos, há um longo silêncio sobre a causa da restauração durante todo o ano de 1917, enquanto se falava das Aparições, e há um longo silêncio sobre Fátima, entre os anos de 1918 a 1922, quando o assunto da Diocese se tornou prioritário.
Luís Miguel Ferraz
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